Capítulo 1 - Surpresa

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Seu tio estava morto. Foram quase dois anos desde a queda da escada e a descoberta acidental de um tumor no cérebro. "Ao menos foi rápido, ele não sofreu" diziam os vizinhos e amigos que agora cercavam o caixão dentro da capela.

Xiao Zhan, sentado numa cadeira próxima, perguntava a si mesmo: foi rápido? Ele não sofreu? Ele lembrava da noite em que o tio acordou gritando.

O homem, sentado na cama, tinha as mãos na testa e lágrimas que corriam sem parar.

- Tio, o que houve? - Ele perguntou ao se aproximar do homem que ele considerava um pai.

O senhor de cabelos grisalhos levantou a cabeça e o olhou atordoado. Eles tinham acabado de receber o diagnóstico. Havia uma possibilidade mínima de que a doença não avançasse. E então, o homem de 63 anos, criador de vacas leiteiras e produtor de queijos artesanais desde a adolescência, poderia continuar fazendo o que sempre fez. O que seu pai o ensinou a fazer e o que ele tinha ensinado ao sobrinho que ele amava como filho. Naquela noite, após longos minutos e um afago de Zhan nas costas curvadas do homem, ele respondeu:

- E se quando eu morrer, você ficar sozinho aqui pra sempre?

Seu tio estava preocupado com ele e não consigo? Zhan não sabia o que responder. Aos 7 anos, quando os pais disseram que ele iria passar as férias com o "tio que mora numa fazenda'', ele achou incrível. Zhan não imaginou que essa tivesse sido a oportunidade criada para se livrarem dele. Embora sua mãe tenha beijado sua testa antes de ir e seu pai também - o que não era comum - ele não achou que essa seria a última vez vendo aqueles rostos. Agora, 23 anos depois, a ideia de ficar sozinho parecia mais do mesmo e ele achava que tinha parado de se incomodar com a solidão.

- Tio, você tem medo de quê? Que eu fique ranzinza como você?

A última frase carregava um tom de sarcasmo e carinho. Ele sempre chamava o tio de ranzinza quando os dois discordavam.

Seu tio franziu a testa e suspirou.

- Eu tive você, Xiao Zhan. Eu não vivi, não envelheci e não vou morrer sozinho porque você está comigo.

Zhan engoliu em seco com a profundidade daquelas palavras. Eles pararam de se dizer "eu te amo, tio" e "eu te amo, meu pequeno" quando Zhan virou um adolescente. No lugar dessas frases objetivas, entraram: "Você já comeu? Eu fiz o prato que você adora", "Você vai precisar de algo da cidade?", "Eu não devo demorar, mas me liga se quiser alguma coisa", "Você gosta dessa cor? Eu quero pintar essa porta", "Você está ficando mais velho hoje, o que quer fazer?".

Antes que a dor e o amor dessa lembrança o fizessem chorar, ele sentiu mãos delicadas tocarem seu ombro.

- Zhan?

Ele se virou para encontrar a expressão sempre doce e suave de Lia, sua amiga de infância e vizinha. Lia era uma mulher negra, tinha nascido no Brasil e se mudado com os pais para a China ainda criança. Zhan se aproximou dela no colégio justamente porque não aguentava mais ver o quanto as outras crianças zombavam da menina que ele tinha achado a mais linda de todas que já tinha visto na vida.

Sua melhor amiga tinha se casado e era mãe de uma garotinha de 5 anos. Para ele, a pequena que agora dormia com a cabeça encostada no ombro de Lia não poderia ser mais fofa.

- Zhan, há um advogado lá fora dizendo que precisa falar com você.

Zhan parou de admirar o sono e a paz da afilhada, acenou para Lia, e foi em direção à entrada da capela. O advogado, Dr. Huang, estava com a expressão aflita, mãos fechadas em punho e suor descendo pela testa. Fato que Zhan achou estranho.

Após a descoberta da doença, foi Dr. Huang que cuidou de toda papelada referente aos bens que o tio deixaria de herança. Ele havia se tornado uma figura comum e harmoniosa nos últimos meses.

Momentos depois, na sacristia, Zhan olhava com perplexidade para o advogado à sua frente.

- Xiao Zhan, seu tio não achava que iria encontrá-lo e...

- Eu nem sabia da existência desse filho! Como ele nunca me disse que tinha um filho?!

- Zhan, fique calmo. Você ainda é dono de 85% de tudo. Wang Yibo terá apenas 15%.

- E eu vou ser obrigado a tê-lo na minha casa e ensinar tudo sobre a produção dos queijos porque esse foi o último desejo do meu tio?

Por mais que Zhan tentasse, não conseguia entender como seu tio não lhe contou que passou os últimos meses procurando um filho. Alguém de quem ele nunca falou em vida. Alguém que agora Zhan teria que conviver. Um completo desconhecido.

- Quem é esse cara? Ele aceitou essa situação? Ele nem teve contato com esse pai. - Zhan passou as mãos nos cabelos negros em descrença e confusão.

- Bom, ele... Ele aceitou.

Zhan ficou ainda mais atordoado e ergueu as mãos em questionamento.

- Ele é mais novo que você e... Estava preso. - Zhan ergueu a cabeça e arregalou os olhos para o advogado que começou a gaguejar - P-por poucos dias, ele tinha se metido numa briga de bar, só isso. Quem pagou a fiança dele fui eu e como ele não tinha para onde ir...

Zhan agora ria de nervoso.

Detido? Sem teto? O que mais?

Dr. Huang respirou fundo e assumiu uma expressão mais séria e confiante. Ele se aproximou de Zhan.

- Xiao Zhan, ele é jovem e um pouco esquentado, mas não é um criminoso ou coisa do tipo. Confie em mim.

- Sério?! Quem me garante que ele não vai me matar enquanto durmo para ter direto à propriedade inteira?

- Ele não ganharia nada. Se algo acontecer a você antes do fim do período determinado no testamento, Wang Yibo não tem direito a nada. A propriedade iria à leilão e o dinheiro seria doado a uma instituição de caridade.

- E se eu comprar a parte dele? Eu tenho algum dinheiro guardado. Ele pega o dinheiro e vai fazer a vida do jeito que quiser.

- Como eu disse, há uma cláusula. Wang Yibo só pode vender a parte dele após o período determinado, ou seja, 15 meses fazendo o que foi estipulado no testamento. E você também, precisa ajudá-lo por pelo menos seis meses completos, pois corre o risco de não receber sua parte. Agora, se Wang Yibo desistir em qualquer tempo antes dos 15 meses, a fazenda inteira é sua.

Zhan estava deitado na cama e o silêncio na casa era familiar e, ao mesmo tempo, diferente. Ele e o tio sempre foram pessoas reservadas, mas um arrastar de passos no corredor sempre era ouvido... Só que agora não mais.

Ele tentou se lembrar de alguma menção, algo que talvez ele não tenha prestado atenção o suficiente. Um indício de que seu tio um dia tinha se apaixonado e essa relação tivesse dado frutos. Zhan era adulto, mais provável que a paixão não estivesse presente na equação, pode ter sido um caso de apenas uma noite ou poucos meses. Ainda assim, era difícil de acreditar.

"Velho safado" e cheio de surpresas! Como se não bastasse ter ido embora tão cedo, ainda quer que eu cuide do filhinho bastardo e inconsequente dele por um ano e meio?!

Esse tal de Wang Yibo pode muito bem desistir antes dos 15 meses...

Foi no novo silêncio da casa e em meio ao turbilhão de seus pensamentos que ele dormiu, para se preparar para a chegada do bastardo inglório no dia seguinte.

Lentamente - YizhanOnde histórias criam vida. Descubra agora