Saudade

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Eu gosto de pensar que minha palavra preferida não existe tradução para outra língua, por mais que exista sinônimos não há vocábulo que transmita com tanta intensidade a mensagem de falta do que a palavra "saudade". Por isso sou grato por ter nascido em um país com o idioma oficial português, por exemplo, Miss you do inglês, Yo extraño do espanhol, ça me manque do francês que apesar de ser uma língua linda não soa tão forte como "estou com saudades" do português.

— E quando você pretende voltar? —Maria perguntou na vídeo chamada.

— Acho que na segunda meus pais já querem ir embora. —respondi um pouco desanimado, aquele ano foi um dos poucos que coincidiu das férias trabalhistas dos meus pais cair no mesmo mês que minhas férias escolares.

— O que foi?

— Queria aproveitar mais, aqui está tão bom.

— Mais se você ficar mais uma semana aí quando chegar não teremos dias livres, as aulas vão voltar em breve.

— Você eu vejo quase durante todo o ano não faz mal ficar um mês sem te ver.

— Verdade. Não volte mais, fique aí durante dois meses então. Eu não ligo. —disse brava desligando a ligação.

Por mais que eu convivesse diariamente com Maria Alice ela continuava sendo imprevisível para mim. A adolescente que falava as coisas mais absurdas e mais questionáveis com a maior naturalidade ainda não conseguia dizer certas coisas e eu só consegui entender isso bem mais tarde.

— Eu não entendi o porquê da professora colocar a gente em grupo separado. —reclamou analisando o livro tema do trabalho.

— Só ela que faz as escolhas, ainda bem que nenhum outro professor tem essa frescura. —finalizei.

— Você terá que aguentar a Vitória, coitado. —Maria brincou.

— Ela é chatinha, mas tem quase as mesmas notas que você, não será tão difícil assim. —Alice fechou a cara, era até engraçadinho vê-la emburrada. —O que foi?

— Já que eu não faço diferença deveria fazer todos os trabalhos com ela então. —revirou os olhos.

— Maria Alice. —ela me encarou com aquele olhar gigante com cílios finos e cumpridos. —Está com ciúmes? —questionei brincando.

— Óbvio que não, vai lá com a sua best Vitória

Naquela semana Maria Alice me odiou por razão das diversas provocações e brincadeiras, eu amava ver sua cara brava quase que sorrindo.

— Quanto tirou? —me perguntou.

— Três e você?

— Gabaritei. —vi o sorriso satisfeito nela.

Sinto saudades da época da escola, assim como sinto saudades dela. Minha palavra preferida só se tornou minha palavra preferida depois que me vi sozinho, não foi depois da morte de Maria Alice, foi um pouco antes dela me deixar viúvo.

— É um diagnóstico complicado tanto para o paciente quanto para os familiares, mas Maria Alice ainda tem longos anos pela frente. —o doutor me confortava em uma das primeiras consultas depois do diagnóstico, o sentimento da saudade começou a surgir ali.

Maria estava ao meu lado ainda, porém não era a mesma coisa, claro que ao decorrer de todos esses anos que passamos juntos várias coisas mudaram, somos seres humanos é natural mudanças.

Já dizia Heráclito, um homem jamais pode banhar-se duas vezes no mesmo rio porquê não será as mesmas águas e muito menos será o mesmo homem. A filosofia desse pensador era algo que eu gostava de me lembrar e repassar na minha cabeça sempre que estava com Maria, porquê eu sabia que em todas as versões de Alice eu estaria presente, assim como em todas as minhas versões ela estaria, mas agora com o alzheimer eu me sentia perdido.

Me parecia injusto ela se esquecer, ainda mais de mim.

— Bom dia amor, o que você quer comer hoje nesse dia especial? —me acordou com um belo sorriso animada.

— Bom dia vida, o que tem nesse dia tão especial? —era apenas uma segunda de abril.

— Você esqueceu o seu próprio aniversário?

— É mesmo, como pude me esquecer? —na verdade eu nasci em novembro, mas tudo bem.

O mal de alzheimer afeta muito mais do que só a memória, a desorientação de tempo e espaço era um dos sintomas que Alice mais teve e estava tudo bem, ela me ensinou a tirar situações boas de momentos ruins. Idai que ela não se lembrava que ainda estávamos em abril, era uma segunda feira e eu estava comendo bolo com morangos no topo ao lado do amor da minha vida.

Sinto saudades dos inúmeros aniversários ao longo do ano e das inúmeras caças ao tesouro de utensilios domésticos.

— Maria Alice, você sabe onde está o tabuleiro cinza?

— Eu guardei.

— E onde está?

— Eu guardei.

— Vamos achar juntos então.

Sempre estava em lugares totalmente improváveis, mas que por algum motivo fazia sentido estar ali, como por exemplo o tabuleiro cinza que foi guardado por ela na cristaleira junto a xícaras e pires detalhados em cinza. Acho que com o alzheimer eu pude conhecer a versão mais pura e compreensível de Maria Alice, eu consegui a decifrar, infelizmente não por inteira.

A palavra saudade vem do latim solitas, remete a solidão e significa sentimento melancólico devido a falta de algo o que eu acho que foi um erro do idioma, melancolia tem como sinônimos tristeza, desencanto, depressão entre outras palavras deploráveis, nenhum desses vocábulos remetem a minha saudade de Alice.

— Você tem saudade de algo? —me perguntou.

— Sim. —respondi.

— Do que? —olhei seus olhos que por causa da idade estavam pequenos, mas ainda pareciam ter um universo dentro.

Eu sentia saudade dela, mesmo ela ainda estando ali, como poderia explicar isso? Devido ao tempo eu acho que peguei a mania de Maria Alice de não conseguir dizer certas coisas.

Saudade.

Substantivo abstrato.
7 letras.
7 fonemas.

Minha saudade.

Nome composto
10 letras.
9 fonemas.

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