Pode chorar

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Eu não me lembro muito bem de como conheci Alice, tínhamos em torno de sete anos, foi em uma pré escola aqui da cidade.

— O homem bateu em minha porta e eu abri, senhoras e senhores bota a mão no chão... —meus colegas de turma cantavam batendo a corda enquanto eu pulava. —Senhoras e senhores pule de um pé só. —me lembro que nessa parte a corda bateu no meu único pé no chão e eu caí com tudo no pátio da escola.

Crianças do maternal também podem ser cruéis, eu havia acabado de levar um tombo e a maior parte da classe ria.

— É por que ele é gordo, o pulo dele não é tão alto por causa do peso. —o menino falou entre alguns risos forçados.

Naquele momento eu já estava fragilizado pelo ralado no joelho e aquele comentário me deixou ainda pior, passei as palmas das mãos em meus olhos e me levantei rapidamente saindo dali com pressa. Me sentei em um banco mais afastado das outras crianças que brincavam no parquinho.

— Você está bem? —foi o primeiro contato que tive com Maria Alice.

— Estou. —funguei o nariz.

— Você pode chorar se quiser, eu te abraço para confortar.

— É feio chorar.

— Minha mãe disse que está tudo bem chorar porque ela sempre vai estar do meu lado para confortar, já que sua mamãe tá longe eu finjo ser ela.

Depois daquele intervalo Maria Alice se tornou a minha melhor amiga, sempre brincávamos juntos no recreio e as danças das festas de junho ela sempre me acompanhava mesmo sendo de turmas diferentes.

— Qual sala será que estamos? Tomara que dessa vez a gente estude juntos. —a mini Alice de nove anos me perguntava empolgada com a esperança de que aquele ano finalmente estivéssemos na mesma sala.

— Maria Alice sala terceiro A. —uma das professoras disse a ela.

— E ele prof? Em qual sala ele está? —apontou pra mim.

— Terceiro B.

E mais uma vez estávamos separados. Não sei se era por ordem da escola manter a gente separado ou se era somente coincidência, as professoras tinham ciência de que Maria Alice era a única que conversava comigo. No intervalo das aulas era o único momento que eu tinha paz, ao lado de Maria nenhuma criança aparecia para fazer bullying ou qualquer comentário infeliz que ficasse rondando minha cabeça infantil por horas, raramente aparecia.

— Por que você é amiga dessa baleia, ele vai comer seu lanche. —o menino ao lado de Alice se pronunciou após eu sentar na mesa do refeitório.

— Por que você não come seu lanche e cala a boca? —Maria pegou o pão que estava em sua mão e enfiou quase por inteiro na boca da criança.

Maria Alice foi para direção aquele dia e a partir da semana seguinte eu fui transferido pra sala dela, até hoje eu não sei o que ela disse pra diretora, mas funcionou de certa forma para que pudéssemos estudar juntos.

— Mesma turma de novo, Alice. —digo após ler nossos nomes na folha em frente a sala.

— Jamais seremos separados de novo. —ela sorriu, naquele ano ela tinha tirado o aparelho e se Maria era bonita antes, com seus dentes alinhados ficou ainda mais bonita.

Tínhamos por volta dos dezesseis quando meus pais resolveram me trocar de escola e consequentemente eu me separei de Alice novamente, durou um mês, ela convenceu os pais de mudarem a matrícula dela para a mesma instituição que a minha. Com a chegada dela na escola voltou a minha alegria de acordar todo dia de manhã para passar quatro horas e meia sentado em uma cadeira dura.

— Não acredito que aquela vagabunda não arredondou a minha nota. —falava indignada.

— São só dois décimos, pare de escândalo.

— Você diz isso porque gabaritou.

Maria Alice sempre competia comigo para ver quem tirava as melhores notas, eu sempre fui bom em algumas matérias e Alice em outras, a competitividade me fazia de certa forma querer me esforçar mais. Eu nunca cheguei aos pés de Maria, mas se meu esforço pudesse me levar para caminhar ao lado dela eu já estaria feliz. Foi com pensamentos assim que eu comecei a emagrecer, não foi de um jeito saudável, porém aos poucos eu conseguia ser digno de estar ao lado dela. As piadas pararam, as outras garotas se interessavam romanticamente por mim, Alice e eu mantínhamos como sempre foi.

— Minha mãe preparou dois sanduíches, disse pra eu te entregar um. —me estendeu o alimento.

Eu desembrulhei o pão recheado e por fim mordi um pedaço.

A culpa e a sensação de falta de controle, era isso que eu sentia toda vez que comia algo fora da minha dieta. Eu gostaria de pensar que eram apenas alimentos que irão ser consumidos pelo meu organismo e me dar energia, eu de verdade queria pensar assim, mas minha mente transtornada da época pensava apenas em números. Não era porque estávamos na escola e a próxima aula seria prova de matemática, eram calorias, eram números na balança, eram piadas e risos sobre meu corpo.

— Você não gostou? —me perguntou.

— Está muito bom. —respondi.

— Sabe, o trigo do pão é carboidrato que vai te fazer ter energia, o tomate é fonte de vitamina e fibras que faz o seu sistema imunológico funcionar direito e as fibras ajudam na digestão e o frango é fonte de proteína que ajudam o músculo crescer. —Alice explicava com atenção observando os ingredientes do lanche. —Temos um ótimo combustível para manter nosso corpo funcionando em mãos, afinal, é pra isso que serve o corpo, né?!

Eu poderia jurar naquela época que escondia bem meu problema alimentar, mas agora lembrando de minha Alice eu tenho certeza que ela sabia e como não saberia, durante os anos que passei ao lado dela, Maria sempre fazia questão de lembrar que ela me conhecia até mais do que eu próprio me conhecia.

O minha querida Alice, sinto falta de nossas vivências que hoje são só minhas lembranças.

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