O alzheimer por ser uma doença degenerativa acaba aos poucos com o cérebro então até o diagnóstico o próprio órgão já está muito deteriorado. Maria começou a esquecer de coisas pequenas, de onde tinha deixado as chaves, de levar o lixo pra rua, onde tinha guardado os chinelos e de dar a ração do peixe.
— Mãe, a Dori está estranha. —observou Anabel. —Vem aqui ver pai.
— Anabel eu acho que ela morreu. —digo. —Alice você alimentou a Dori direito?
— Sim, deve ser porque ela está velha. —disse convicta.
— Velha? Mãe a gente comprou ela semana passada.
Não foi algo alarmante aquele episódio, pelo menos não pra mim que achava que era só sobrecarga do trabalho que a deixava distraída e mais cansada. Se Alice começou a apresentar sintomas gritantes com 62 anos significa que quando ela tinha 40 já estava começando o processo da doença.
— Vamos fazer uma festa surpresa para Anabel? —perguntei entregando a xícara de chá que tomávamos juntos toda noite.
— Claro, vamos alugar o salão aqui da rua.
— Não, vamos fazer aqui em casa mesmo, alugar não dá mais tempo nem teriam reservas disponíveis.
— Amor mais em um mês da pra gente achar um outro salão.
— Um mês vida?
— Sim.
— O aniversário da Anabel é semana que vêm. —ela me olhou confusa parecendo buscar informações na sua própria cabeça.
— Verdade tinha me esquecido, não sei por onde anda minha cabeça ultimamente.
Talvez se eu tivesse observado mais e sido menos ignorante eu poderia adiar durante uns dois ou três anos o diagnóstico da minha esposa, tê-la obrigado a sentar em uma cadeira e realizar quebra cabeças, caça palavras e jogos da memória.
— Pai eu acho que a mamãe não está bem.
— Deve ser cansaço vou acompanhar ela na consulta amanhã com o neurologista. —e foi nessa consulta que começaram as investigações para o alzheimer.
Sei que é um pouco bronco de minha parte agradecer com todas as minhas forças por Anabel ser adotada e não ter o genes do alzheimer da família de Maria por mais que eu possa jurar que ela tem os mesmo olhos gigantes da mãe.
— Eu queria ser bonita igual você mãe. —a mini Anabel dizia olhando Alice se arrumando no espelho.
— Você é linda minha filha, até mais que eu.
— Eu queria ser igual a você, se eu tivesse nascido da sua barriga eu seria assim também.
— Você tem uma beleza única não precisa se parecer comigo.
— Vocês duas são as mulheres mais lindas que eu já vi na vida, sou um homem de sorte. —me pronuncio pela primeira vez no diálogo.
Anabel não tinha meu genes e nem de Alice, o tipo sanguíneo não era compatível, os traços do rosto eram distintos e até mesmo os fios de cabelos não tinham semelhanças nenhuma, porém minha filha era o misto de tudo que eu e Maria temos de positivo.
— Olha essa foto que tirei do besouro.
— Você não tem medo do besouro filha? —perguntei.
— Um pouquinho só.
Meus olhos cinematográficos estavam presentes em Anabel, bem como o olhar que parecia ter um universo inteiro de Maria, minha filha era a perfeita junção nossa. Alice ainda vive no rosto de Anabel.
Melhora súbita, é um tipo de falsa esperança que o universo, deus ou até mesmo a ciência resolve nos dar, é quando os neurônios fazem seus últimos esforços para tentar melhorar e de fato conseguem uma melhora quase que total, porém não dura muito tempo e então param de funcionar totalmente.
— Maria sua avó está internada é pra ir visitar ela no hospital. —Milena dizia ao telefone.
— Está bem mãe, vou ir hoje. —e assim foi feito.
Entramos no quarto e a idosa bebia água sozinha.
— Vó? —Maria entrou anunciando a presença.
— Maria Alice, como está? Toma a benção. —ela abriu um incrível sorriso.
— Bença. —Alice beijou a mão. —Estou bem, se lembra do meu marido?
— Claro que me lembro, como vai querido?
— Vou bem e a senhora?
— Não me chame de senhora porfavor, sou velha contudo nem parece. —rimos. —Onde está Milena? Preciso que ela me tire daqui a enfermeira disse que só pode me liberar se minha filha vier.
— Vou ligar pra minha mãe.
Aquela tarde aconteceu a melhora súbita da senhora, não sabíamos sobre o assunto então quando caiu a noite e ela foi dada como falecida foi um choque. Minha sogra chorava muito, mas estava em paz com o fato da mãe ter lembrado do amor da família nas últimas horas de vida.
Quando Maria Alice dava sintomas alarmantes sobre o alzheimer a única coisa que eu conseguia pensar era em como eu queria sua memória de volta e todas as células cerebrais funcionais como sempre foi.
— Onde está a Dori, preciso alimenta-la. —procurava o aquário por toda casa. Alice não acharia nem se tivéssemos alimentado ela direito, peixes bettas vivem no máximo cinco anos e essa história já iria fazer vinte e três anos.
— Está com Anabel.
— E onde está Anabel?
— Está no apartamento dela.
— Anabel é só uma adolescente não pode morar sozinha.
Eu só queria minha esposa de volta como sempre foi e meu pedido mais tarde foi realizado.
— Amor, vamos chamar Anabel para almoçar? —me perguntou.
— E onde está Anabel? —perguntei.
— Está no apartamento que demos a ela de presente ou ela avisou que iria estar em outro lugar? —Maria Alice estava lembrando.
— Vou chama-la. —digo deixando lágrimas escaparem por meus olhos.
— Meu amor, por que está chorando?
— Só estou feliz, só isso. —mentira.
É egoísmo da minha parte dizer que naquele momento eu queria que Maria Alice se esquecesse de tudo, esquecesse do aniversário da filha, de alimentar o peixe betta, de onde deixou as chaves, das senhas dos cartões e até mesmo se esquecesse de mim. Eu sou egoísta por querer que ela vivesse mesmo que doente, vivesse comigo.