PRÓLOGO

43 6 0
                                    

(Haverá conversas em francês nesse capítulo. Deixar na dúvida e levá-los a pesquisar sobre o que significam as palavras é proposital. Espero que isso seja divertido para experiência de vocês, leitores)


O cheiro dos campos verdejantes preenchia seus pulmões. Podia sentir, também, o odor das vinhas mais ao sul do acampamento no qual moravam, vindo do belo vilarejo de Kaysersberg. As nuvens brancas encobriam o sol que nascia ao longe. Nas folhas das gramas, via-se o orvalho da manhã.

— Mémé, où allons-nous? – a pequena garotinha francesa de cabelos vermelho claro indagou, enquanto via sua avó a levando em direção a um belíssimo Ford Escort XR3 preto, parado numa estradinha de terra mais à frente dos campos pelo qual caminhavam. Dentro, sua tia, com os olhos imersos em lágrimas, aguardava no banco do motorista.

Ao longe, via sua mãe choramingando. Ao lado dela, segurando-a pela mão, sua irmã, a pequena Aline – pouco mais de um ano mais velha – que encarava sem entender, com olhar cabisbaixo.

— Mémé, pourquoi mama pleure? Lili pleure aussi... – a garota murmurou, mas foi interrompida pela sua avó, que lhe pegou no colo, encarando-a com olhos imersos em lágrimas. Sem falar nada, a pequena garota, de talvez seus quatro anos, acariciou o rosto da senhora que sentiu, por um instante, uma paz indescritível.

Sorrindo para criança, a velha lhe deu um beijo na testa, abriu a porta do carro e a colocou com todo cuidado.

— Mama, preciso ir logo. Sabe que não sou aceita nesse lugar. Se Dimitri e os outros me virem, arrancarão minha cabeça – a tia da garota disse em inglês, tensa.

— Arrancarei as deles se tentarem algo contra você! Sou a matriarca desse clã e não importa se você nos rejeitou, ainda faz parte da família. Em seu coração corre o mesmo sangue cigano que corre nos nossos. Prometa que cuidará bem de Aurora – a velha disse, ríspida.

— Claro que prometo, mama. Por tudo que é mais sagrado. Alguns amigos já conseguiram documentos para ela. Viverei com ela em Londres, como minha filha. Garantirei que ela tenha a melhor vida e educação. Sabe que pode confiar em mim.

— Obrigado, minha filha. Oh, Aurora, ma petite chérie... – a velha falou com voz mansa, enquanto acariciava os cabelos da pequena Aurora.

Os enormes e brilhantes olhos castanho-claros da garota pareciam refletir o mundo, a inocência e a pureza. Com todo cuidado, a velha pegou uma adaga prateada, com uma joia avermelhada presa ao punhal, embainhada num coldre de couro e entregou para criança, que sorriu.

— Mémé, ton couteau! – disse, animada, encarando a adaga com a qual sempre brincava quando pegava escondida da avó. Tentando conter as lágrimas, não pôde evitar o sorriso de alegria ao ver a menina animada.

— Mon amour, tu devras accompagner ta tante Magdalene. Elle prendra soin de vous et vous aurez une vie merveilleuse et fantastique. Mais ce ne sera pas ici, pas avec nous. Gardez ce poignard avec vous et protégez-le avec tout ce qui est le plus sacré. Obéissez à votre tante et souvenez-vous: votre petite sœur, votre mère, moi et tout le clan vous aimeront toujours. A bientôt, ma petite fille. – despediu-se, abraçando-a com toda força.

O carro acelerou, afastando-se. Olhando pelo para-brisa traseiro, a pequenina Aurora encarava confusa sua família ficando para trás. Não entendia a razão pela mãe se despedir, assim como sua avó.

Por que estavam fazendo aquilo?

...

AURORA D'ALBUQUERQUE acordou ofegante, levantando-se de sua cama assustada, apenas para ver deitado sobre seus pés, Coragem, seu pequeno gato de pelos alaranjados, encarando-a com olhar sonolento. O felino, sem cerimônia, lançou um longo e preguiçoso miado, saindo da cama e caminhando em direção a porta do quarto, parando um instante para olhar para trás e espera-la.

Por Dieu, meu filho... tá bom, vou colocar a ração.

Pegou seu smartphone e olhou as horas.

7h32min.

Suspirando, cobriu o rosto com o antebraço. Ainda faltavam quase trinta minutos para seu alarme tocar. Preguiçosa e lenta, levantou-se da cama e, cambaleando, seguiu em direção ao banheiro. Após fazer suas necessidades e lavar o rosto, se encarou durante alguns segundos no espelho.

Seu cabelo ruivo, mesmo sendo curto, estava todo espalhafatoso, como se tivesse levado um choque. Usava apenas uma regata de alcinha azulada. Dengosa, murmurou:

— Como odeio acordar segunda de manhã...

Após pôr a comida de seu bichano, colocou uma calça preta boca de sino, uma camisa social branca e um terno neutro. Para finalizar, passou uma maquiagem bem leve, para deixar o mais natural possível. Prendeu em sua calça o coldre e pegou sua pistola 9mm, encarando-a durante alguns longos segundos. Assim como alguns outros policiais da corporação, não se sentia muito à vontade ainda com a arma de fogo.

Porém, desde os ataques terroristas recentes, muitos acabaram por optar pelo uso. Aurora acabou sendo uma dessas pessoas. Não que ter armas de fogo garantisse que não levariam um tiro, mas a sensação de segurança e chance de contenção numa situação extrema acabam por serem maiores.

"Somos mediadores da lei, não uma força repressora" um dos policiais que negou o uso da arma de fogo comentou.

Aquela ideia batia com mais força em sua cabeça, visto que ela não era uma agente de rua: era responsável pelo setor de psicologia forense da New Scotland Yard. Seu trabalho, ainda que vez ou outra sendo levada a acompanhar alguma investigação in loco, raramente necessitava de força bruta ou semelhante.

Suspirando, guardou a arma no coldre, pegou seu distintivo e seguiu para sala, pedindo um carro por aplicativo.

Enquanto aguardava, encarou a foto no porta-retratos digital sobre o criado mudo, ao lado do sofá. Olhou a foto dela e de sua tia Madalene, no asilo na qual a própria atualmente vive. Respirou fundo, sentindo leve pesar em seu coração ao pensar sobre a condição mental de sua tia: ela acabara por desenvolver demência, cerca de dois anos atrás, e o quadro tornava-se cada vez mais crítico. Desde o atentado terrorista, há duas semanas, não tivera a chance de visita-la. Na sexta-feira anterior, as cuidadoras ligaram, perguntando se Aurora estava bem e que Madalene passou a semana inteira perguntando por ela.

Em geral, tinha o costume de visita-la, ao menos, uma vez por semana, visto que o asilo ficava muito longe de Londres. A sua tia insistira que, se um dia fosse internada, que fosse no Woldingham Care Center, que ficava a quase uma hora de distância.

"Prometo que vou te visitar em breve, tante" pensou consigo mesma. Em seguida, passou a foto do porta-retratos digital, vendo uma imagem que conseguira depois de muitos anos: sua família. Respirou fundo, com certo peso no coração.

Já fazia cerca de vinte e quatro anos desde aquele dia.

No início, fora difícil aceitar, ainda que, mesmo quando criança, tivesse visto muita coisa da qual pouco entendia, porém em muito discordava.

No final, só pôde agradecer por sua avó afastá-la dos negócios da família. Talvez fosse até mesmo uma rima poética: Aurora, nascida de uma família de ciganos, acabar se tornando uma agente da NSY, pouco tempo após se formar em psiquiatria.

Uma mensagem então chegou ao seu celular.

Era hora de trabalhar.

O Culto da Cabra Negra de Mil Crias • Série Tentáculos do Caos, livro IIOnde histórias criam vida. Descubra agora