Decalcomania

Capítulo Bônus

"Tenho medo de deixar no mundo apenas dinheiro
Que o meu nome desapareça entre tantos outros"
Vent'anni, 2020

Faltava dez horas para o meu plantão acabar, meus pés estavam me matando, tinha acabado de sair de uma cirurgia de 6 horas, tinha planos de tomar um café e tirar um intervalo de alguns minutos, então faria a checagem dos meus pacientes e por fim o relatório dos residentes. Bom, parece que fazemos planos e os deuses se divertem, quando estava entrando no corredor da cardiologia, passa por mim uma maca com três enfermeiros, dois residentes e o diretor do hospital ao redor, acompanho o movimento, já que estão indo para o centro cirúrgico, olho para o homem na maca, eu o conheço, ele é a razão de eu estar aqui, ele é a razão de eu ter vivido, de ter a vida que tenho, ele literalmente salvou minha vida.

-Aquele é Radesh Patil? - pergunto ao diretor antes dele abrir a boca - o que houve?

-Infarto Tipo dois - ele me olha - preciso que tome conta desse caso, Patil é um nome importante então preciso de você nisso

-Claro, eu assumo - eu o faria de qualquer forma - preciso apenas de um café, peça para que o preparem, preciso do relatório inicial em 10 minutos...

-Ok, vou pedir para o residente que o recebeu lhe procura - ele sai com os olhos no celular, vou em busca de café e um pouco de calma,afinal iria entrar em cirurgia daqui a pouco...

Seis horas e meia depois saio da sala de cirurgia e sento na primeira cadeira que encontro, foi uma cirurgia delicada e peculiar , era quase como se tivesse sido orquestrado, o músculo estava com aspecto saudável, tudo ao seu redor estava, o que é muito estranho,porém, quando sair a bateria de exames saberei o que aconteceu de errado. Me recomponho, ele está sendo enviado para o quarto e agora terei que lidar com a família, me lavo visto meu jaleco e vou ter com eles, é uma família mista, a mãe é tailandesa o pai indiano, o filho mais novo está indiferente concentrado em algo no celular, ao lado dele o que julgo ser sua esposa que reflete o marido, o filho mais velho anda de um lado para o outro, exigindo notícias e berrando ordens a qualquer um que passar, a esposa tenta acalma-lo, porém sem sucesso, a mãe está sentada, olhando para o nada, parece estar orando ou algo do tipo, olho ao redor e não vejo a filha mais nova, acompanhei essa família de longe, é lamentável que o primeiro contato seja em circunstâncias tão delicadas, crio coragem e me aproximo

-Olá - me curvo para a esposa do paciente que é o membro mais velho da família e a tutora do paciente - eu sou o doutor Kabir Sharma, responsável pelo caso do seu marido e...

-Comigo... - o filho mais velho me interrompe estalando os dedos na frente do meu rosto - dirija-se a mim.. - olho para a senhora que apenas acena positivamente

-Como estava falando - recomeço - o paciente teve um infarto tipo dois, que é quando o coração não recebe a oxigenação necessária, estamos investigando para saber a causa, no momento ele está sedado e ficará assim por mais algumas horas, vocês podem entrar, qualquer dúvida peça para alguém me chamar... Seria aconselhável ficar um número menor de pessoas, sugiro que haja um rodízio.

-Obrigada doutor - a esposa fala, se aproximando de mim com lágrimas nos olhos - Meu Radesh ficará bem?

-Ficará - digo segurando suas mãos - eu prometo...

Vou para minha sala ignorando as ordens do filho mais velho, definitivamente ele é o ser mais detestável que eu tive o desprazer de conhecer, foi uma criança detestável e se tornou um adulto execrável. Caio no sofá e simplesmente durmo, não sei quanto tempo fiquei ali, mas acordo com a residente me chamando, avisando que o paciente acordou, jogo uma água no rosto, ajeito meu cabelo e o jaleco amarrotado, ainda estou com roupa de cirurgia. Quando chego no quarto não tem esposa, filhos os noras, apenas o paciente de olhos abertos olhando fixamente para a garota que está dormindo encostada na cama, ela apoia a cabeça no braço, seus cabelos estão caídos pelo rosto, então a reconheço, é ela, é a garota que eu vejo nos meus sonhos nos últimos anos.