Noite de terça

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[Mensagem de texto — herdeira do agro]

"Vai ter festa no apê da Gattaz mais tarde. Passo pra te buscar depois do treino. Beijos"

Luiza soltou o ar pelo nariz em um riso incrédulo. Era manhã de terça-feira, um dia incomum para qualquer tipo de celebração, mas suas amigas aparentemente ignoraram isso. Pensou em ligar para Julia, queria escutar a voz da garota depois dos poucos minutos que conversaram desde a sua última sessão de fisioterapia. Sheilla havia dado uma carona para a ponteira, mas - por mais grata que tivesse ficado - Luiza gostaria de ter tido a chance de passar mais tempo com as suas companheiras de time. Então, a ideia de festa já não parecia tão absurda.

Despertando por completo da preguiça matinal, Luiza alcançou a muleta antes mesmo de se sentar corretamente no colchão. Aquele era um movimento tão habitual quanto respirar ou piscar os olhos. No fundo, a garota odiava ter que depender do objeto, mas a muleta exercia uma função além da literal para ela. Luiza tinha uma lesão, isso era indiscutível, porém a etapa em que se encontrava a sua recuperação já não exigia tanto assim o auxílio de suportes. Ela os usava muito mais como escape mental, algo tangível que lhe alertava rotineiramente que ela estava doente.

— Filha, já acordou?

A pergunta do pai sobressaiu os pensamentos nublados da esportista, despertando-a para o momento presente. Sem obter respostas depois de alguns instantes, o homem inclinou os ouvidos para a folha da porta antes de anunciar:

— Assei uns pães de queijo pra você.- o tom persuasivo dele era evidente.

— Já estou descendo, pai.- respondeu Luiza, sem delongas.

O segundo pensamento do dia era como o ser humano conseguia ser extremamente adaptável. Uns dois meses atrás Luiza tinha calafrios toda vez que precisava esticar o braço, apanhar a muleta e com certa destreza colocá-la em pé antes mesmo de estar sentada no colchão. Passados quatro meses da cirurgia, ela fazia aquele movimento com uma agilidade quase mecânica, automática.

Chacoalhou a cabeça em frente ao espelho para dispersar mais uma das divagações, cuspiu a espuma da pasta e checou a higiene dos dentes alinhados antes de abandonar a imagem no reflexo. Os fios acastanhados estavam desarrumados, os olhos cor-de-mel pareciam menores por ainda estarem inchados pelo recém despertar. O primeiro pensamento sobre a festa voltou: precisava convencer o seu pai de deixá-la ir.

Luiza desceu as escadas num ritmo torturante. Degrau por degrau. Ora a muleta servia de sustentáculo no assoalho de ipê antecedendo os pés, ora a perna direita iniciava o movimento. Alberto havia aprendido com a fisioterapeuta do Minas que, por mais que quisesse e se sentisse angustiado, deveria deixar a filha retomar a autonomia que a lesão tirou e isso implicava em assisti-la descer as escadas sem poder ajudar.

— Hoje eu vou conseguir te buscar na fisioterapia.- avisou, antes de Luiza pisar no corredor do térreo.

— Não vou hoje.- ela respondeu, concentrada demais nos dois últimos degraus para dar atenção ao olhar questionador de seu pai.

— A Bruna não vai estar lá?

O homem cruzou os braços na frente do tronco largo e observou a filha completar a ávida missão de se locomover.

— Ela vai, mas ela também disse pra eu fazer no meu tempo.- deu de ombros, achando que seu argumento era o suficiente.

— Filha...- chamou num tom manso, quase suplicante, mas foi cortado pela garota.

— Ei, relaxa, pai.- quando chegou no solo, ela apoiou a mão direita no ombro do homem e afagou com os dedos o tecido grosso da camisa de trabalho dele. Conhecia aquele olhar de preocupação, todo o cuidado que transbordava das orbes verdes sempre tão atenciosas. Ressentida de negar a carona, Luiza inclinou a cabeça para o lado junto a um meio sorriso como fazia quando ainda era criança e ponderou:— Eu vou amanhã cedo, pode ficar tranquilo.

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