Mentalmente, Bianca roteirizou como seria o diálogo que estava adiando para ter. Os olhares incisivos de Luiza ficaram ainda mais intensos quando Kisy e Julia saíram da roda no tapete para ajudar Macris com as amigas que dormiam no sofá. As três loiras amontoaram os corpos altos na cama gigante de Gattaz, que naquela ocasião ficou pequena. Julia procurou cobertas e travesseiros nos armários de Carol, Macris tirava os calçados grandes dos pés delas e Kisy fotografava a cena de todos os ângulos possíveis com o celular.
Pigarreou, sentindo a voz falhar antes mesmo de ser emitida. Não precisa de tanta preparação assim, é só uma garota. Pensava enquanto seus pés cruzavam a sala de estar, contradizendo a sua própria tentativa de fingir não se importar. Na verdade, Bianca odiava conflitos velados com colegas de time, aqueles que crescem no silêncio e semeiam desconforto na rotina. Ela prezava um bom convívio com todas as atletas que trabalhou.
Aé encontrar Luiza.
— Já tá pronta pra ir?
A pergunta inesperada fez Luiza franzir as sobrancelhas em uma expressão tão confusa que parecia estar presenciando algum evento apocalíptico. Bianca remexeu as pernas desconfortavelmente, se arrependendo no mesmo instante de não ter deixado Macris falar com ela sobre a carona.
— Pra onde?- rebateu a jovem, medindo a outra ponteira dos tênis all star preto até os olhos azuis num ar debochado já característico quando se dirigia a Bianca.
— Vou deixar vocês em casa.- ela disse simples, encolhendo os ombros instintivamente.
— Não, valeu.- o sorriso irônico foi a resposta mais suave ao anúncio da carona.— A Júlia tá de carro.
Luiza não olhou para ela depois de negar, somente forçou seus olhos a desviarem a atenção do rosto de Bianca para voltar a mexer no celular em suas mãos. A frustração da chegada dela deixou Luiza irreconhecível.
Um... dois... três... Bianca contava em pensamentos num pedido mudo aos céus que lhe desse paciência. Puxou o ar pelo nariz e soltou pelos lábios entreabertos, atraindo mais uma vez os olhos cor de mel.
— Não dificulta.- pela primeira vez, seu tom não era tão pacífico quanto antes.— É o meu caminho pra casa e a Macris me pediu. Ela acha perigoso vocês voltarem sozinhas e a Julia bebeu.
Macris não havia pedido, mas ela jamais diria isso. Estava se oferecendo para que a levantadora pudesse voltar para casa mais cedo, para que o casamento dela não tivesse uma pequena discussão sobre pontualidade, para que pudesse tentar entender Luiza enquanto passava mais tempo com ela. Bianca negou com a cabeça com o último pensamento que lhe afligiu.
— Estão prontas, gatinhas?- Kisy apareceu na sala quando o silêncio incômodo sufocava as duas.— A vegana disse que a Bia vai levar a gente.
Nem se tivesse se esforçado muito Bianca conseguiria evitar o sorrisinho de lado que repuxou seus lábios na melhor expressão de "eu avisei". Luiza revirou os olhos tão fortemente que poderia passar mal de labirintite, balbuciou alguma reclamação inaudível e concentrou-se em voltar a ignorar Bianca.
[...]
Por destino ou infelicidade, a casa de Luiza era a última na rota traçada por Macris. Primeiro deixou Julia a poucas quadras do apartamento de Gattaz, depois cruzou o canto leste em ruas e avenidas desconhecidas para entregar Kisy em segurança. As meninas davam instruções vez ou outra para a motorista, que dependia do GPS da mesma forma que precisava de ar para viver. As três sentaram no banco de trás e conversavam assuntos aleatório que Bianca não participava.
Quando Kisy saiu do carro se despedindo da amiga e agradecendo Bianca, levou consigo as vozes e conversas que poderiam guiar o caminho. Sobrou apenas Luiza, Bianca e o gigantesco silêncio desconfortável. A voz robotizada vinda do painel do carro tornou-se a criatura mais comunicativa do trajeto, dando instruções que demandavam um alto grau de precisão, visto que Bianca não conhecia nenhuma das ruas que trafegava.
Em determinado momento, os olhos azuis foram tentados a encarar o perfil de Luiza pelo retrovisor e o fizeram. Ela tinha o maxilar travado, portanto bem definido em uma linha suave até o queixo graciosamente repartido, e os lábios entreabertos por onde saia o ar quente de sua respiração. Era bonita e difícil de lidar, do jeitinho perfeito para enlouquecer alguém.
— Pode trocar de música, se quiser.- avisou Bianca, surpreendendo a si mesma pela tentativa inesperada de interação.
Talvez fossem os olhos cor de mel, a postura indiferente ou todo o conjunto que a fizeram querer ultrapassar aquela barreira intransponível erguida em volta de Luiza. Ela esperou uma resposta que não veio enquanto Style da Taylor Swift tocava baixinho no rádio.
— Tá bom.- Bianca respondeu a si mesma, tamborilando os dedos delgados no volante do carro.— Vou deixar tocando as melhores da loirinha, então.
Luiza praguejava a simpatia da ponteira, o seu sotaque carioca misturado com um português de quem havia passado tempo fora do país. Para além disso, vociferava a vontade crescente que tinha de respondê-la. O cheiro do perfume de Bianca era irritantemente bom e infestava o carro inteiro, impregnando na mente da mais nova. A fragrância lembrava flores frescas em um dia de primavera, mas tinha um toque de doçura tão sutil que não permitia ser enjoativo. Luiza soltou o ar que prendia de forma lenta, esvaindo também a sua força de resistir até ao aroma da outra garota.
— Tá bom.- repetiu, momentos depois.
A resposta - mesmo que sucinta e sem margem capaz de virar uma conversa - trouxe para Bianca uma sensação de vitória. Seus lábios repuxaram suavemente em um sorriso e por alguns segundos o silêncio não era mais tão desagradável assim.
— Tá bom.- o tom denunciava que sorria ao dizer as mesmas palavras repetidas.
O resto do caminho foi feito sem outras quase-conversas. Luiza não falou mais nada, Bianca também não insistiu. As lufadas de ar invadiam o carro pelas janelas abaixadas, tanto do lado do motorista quanto do passageiro atrás, bagunçando os fios de cabelo delas e trazendo um sentimento de que as ruas pertenciam às duas. Nenhum transeunte atravessava as calçadas, da mesma forma que os carros não cruzavam o caminho cobrando aceleração. Não. A cidade de Belo Horizonte parecia dormir para que elas selassem uma paz temporária sem ninguém para testemunhar.
Com mais algumas instruções da assistente virtual, Bianca conseguiu chegar no lugar indicado pelo GPS. Pensou em desafivelar o cinto de segurança e ajudar Luiza a descer do carro, mas elas não tinham essa liberdade e também não queria voltar todo o pequeno progresso que tiveram. Poderia só ficar encarando a rua enquanto a passageira saia do veículo tal qual um motorista de aplicativo, porém seria indiferença demais para uma carona.
— É aqui.
Foi Luiza quem cortou o silêncio. Bianca girou o tronco no banco para vê-la, entendendo a fala como um prenúncio da despedida.
— Tá...- disse, acenando com a cabeça lentamente. Luiza soltou um riso nasalado, achando graça da falta de jeito da garota. Para disfarçar o nervosismo repentino que a fazia parecer boba, Bianca comprimiu os lábios em um sorriso discreto e desviou os olhos para qualquer outro ponto que não fosse o rosto da jovem ponteira.— Bom descanso.
— Tchau, Bianca.
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Olá, tenho mais um capítulo escrito, mas não sei se continuo, se tá legal, se a história tá fluindo bem... enfim, me falem o que estão achando.
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Entre Linhas
أدب الهواةEstrela do maior clube do Brasil e com uma carreira em ascensão, a jovem ponteira Luiza Martins vê o seu futuro despedaçar no instante que seu joelho toca a quadra no quarto set da semifinal do campeonato mais importante do país. A lesão torna-se um...