Deuses

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    Ah, como eu poderei contar essa história para você que lê? Bom, vou começar assim. Vou me apresentar. Eu sou a narradora. Meu nome não importa por agora. O que importa é a história que eu vi e eu vou contar. Bora lá? Sim!
    Os deuses e deusas! Quem já ouviu falar sobre eles? Aposto que você já, de muitos e sobre muitos. Você já deve ter até o seu deus favorito... Então, você ora e faz preces para ele, não faz?
    Existem milhares ou milhões deles. Eu nunca parei pra contar quantos são. Seria como contar as estrelas do céu. Até porque cada civilização possui ou possuiu seu Deus. O que criou vários de nós, os deuses.
    E toda vez que alguém acreditava em um Deus, um de nós surgia. E nunca deixamos de existir se ninguém mais acredita em nós. Ainda existe o Deus da cobra dos astecas, por exemplo, mesmo que os astecas não o cultuem mais. O que comprova que o fim de civilizações não finda o nosso poder.
    Todos os Deuses e Deusas existentes vivem no Monte Olimpo, por ser o lugar maior. Mas não quer dizer que os deuses não visitem o lar ao qual o povo humano acredita que ele pertence.
    O Monte Olimpo... Bom... É o lugar onde mais deuses vivem. Mas alguns deuses podem viver no meio dos homens e ter uma vida normal. É o que nós não costumamos dizer.
    Esses deuses perdem seus poderes e cortam contato com o Monte Olimpo ou com o lar que os homens acreditam que ele irá pertencer. Assim, todos os deuses e deusas vivem e viveram em paz e tranquilidade ao longo dos séculos e mais séculos.
    O homem nunca sabe ou saberá que existem deuses e deusas vivendo no mundo deles. Isso é um código de conduta. Tivemos de tê-lo para evitar mais comoção emocionada e fervorosa dos homens e mulheres da Terra.
    Acredite, os seres humanos ficam malucos ao saberem que estamos entre eles, pessoalmente. Eles precisam que a divindade seja apenas distante. Tão distante que só habite o Reino dos Céus.
    Então, certo dia, uma civilização pequena da China Antiga acreditou na Deusa da Luxúria e a chamou de Tin. Ela surgiu, bela como a própria luxúria poderia ser. Mas a civilização dizia que ela seria solitária eternamente, pois a luxúria é algo ruim. Ela só serviria para proteger os homens em momentos de luxúria, impedindo que o homem fosse castigado pelo próprio homem por seus pecados da luxúria. Seria uma deusa protetora dos pervertidos, não dos amantes.
    Tin, acostumada à solidão, protegeu o homem da ira divina daquele povo que atacava quem tivesse luxúria. Protegia o homem do deus dos bons costumes, intercedendo em favor dele.
    Tin se acostumou com a vida que levava. Amava cada momento de culto e festas em sua honraria. Amou aquele povo e protegeu a todos os que pediu por sua atenção. Intercedeu diante de seus irmãos no tribunal divino dos deuses daquele povo.
    Mas, um dia, a civilização que acreditava nela foi destruída. Sua imagem e nome sobraram apenas em imagens deixadas pelos homens que a cultuavam. Não sobrando ninguém para a cultuar, nem ninguém para que ela pudesse proteger porque ninguém pedia mais sua ajuda em orações. E Tin, a Deusa da Luxúria, foi ficando mais solitária do que nunca.
    O tempo passou e Tin aprendeu a apenas observar o ser humano lá de cima. As gerações passavam e ela observava a tudo, vendo como o homem passou a ver a luxúria como algo positivo e prazeroso. Muitas vezes, a luxúria era vista como algo necessário na vida do homem. O que a fazia sentir alegria, mas também tristeza. Ela não poderia viver nos novos tempos, pois ninguém a conhecia, ninguém a cultuava.
    Passado-se o tempo, Zeus, o Deus mais poderoso, pensando em sua própria reprodução, resolveu criar a regra de que deuses de diferentes religiões poderiam se casar entre si e poderiam se casar mais vezes, tendo um harém. Além disso, os deuses homens poderiam escolher suas esposas e as deusas escolhidas não poderiam negar o pedido.
    Essa nova lei causou revolta em todas as deusas presentes. Atenas não aceitou. E movida por seu temperamento tempestuoso, se recusou a aceitar o que era a nova lei. Mas a regra de Zeus era implacável.
    Atenas sofreu o castigo de ter seu poder retirado e ser mandada para o Fosso Das Almas Perdidas até que Zeus decidisse que ela merecia retornar ou jamais retornaria. Outras deusas preferiram ir ao fosso do que se casarem com deuses que não queriam.
     Tin, sendo uma deusa apagada e esquecida, pensou que era apenas mais uma que ficaria encalhada, jogada para as baratas. Afinal, quem iria querer a Deusa da Luxúria que ninguém nem lembrava que existia? Mas ela estava enganada.
     Tin era uma deusa bela e encantadora. E havia um deus que a queria mais do que tudo nessa vida eterna. O nome dele era Nop, o Deus Da Água de uma tribo indígena da Tailândia antiga. E, assim como Tin, ele era um deus esquecido, sem esposa, sem ninguém.
    Nop pediu a permissão à Zeus para se casar com Tin. A permissão foi concedida. Tin, então, recebeu o aviso de Hermes de que ela se casaria naquele dia à tarde. O que a deixou desesperada. Ela não queria se casar com aquele deus específico, pois ele era muito inconveniente. Além de que não queria ir para o fosso, por ser um lugar de dores e sofrimentos eternos.
    — Tin, querida, você não quer se casar? Eu tenho uma solução. Fuja para a Terra. Finja-se de uma mortal. Zeus poderá ver você lá, mas ele não poderá te obrigar a voltar para cá. As leis são claras. E ele não as revogou, revogou? As leis de deuses na Terra são claras. Nós poderemos ir para lá, se quisermos. — Rissa, a Deusa da Alegria, soprou a voz no ouvido de Tin, após vê-la chorando em um canto.
     Foi quando Tin, sem pensar ou refletir, pulou do Monte Olimpo e caiu no reino da Terra. Mas ela não caiu ali como uma mulher adulta e formada, pronta para viver, sabendo quem ela era. Ela caiu ali como uma bebezinha nua e chorona. E chorou tanto que atraiu a atenção dos criados do palácio, que a pegaram e a levaram para o imperador ver.
    Vendo a beleza do bebê que aparecera em seu palácio, o imperador ordenou que a criança fosse colocada em um quarto real. Como o imperador e a esposa não possuíam filhos, ele soube que aquele era um presente dos deuses para que sua esposa e ele pudessem ter o amado bebê que sempre sonharam. E lhe deram o nome de Samanun Anumtrakul, a bela flor da campina.
     Samanun começou a crescer e foi chamada de Sam. Ela era uma menina alegre e bonita. Todos admiravam sua beleza inconfundível. Seu sorriso era como a luz do sol. Seu olhar era cheio de estrelas como o céu negro. Ela dava, todos os dias, a alegria que o imperador e sua esposa sempre sonharam em ter. E os servos a admiravam por ela sempre tratar bem a todos.
     Zeus nada pudera fazer sobre sua fuga. Tin não estava mais ao seu alcance. Ela era um bebê e estava nas mãos dos homens, sem poder algum. Já estava feito e o Deus Nop não teria sua esposa.
    Ela preferiu ir para o mundo dos mortais para ser uma mortal do que ir para o fosso. E todos nós sabemos que todas as escolhas ali eram ruins para as deusas. Se casar forçado não era uma opção boa para ninguém, muito menos ter seus poderes retirados e ser jogada num foço cheio de almas sedentas... Nem mesmo se jogar no mundo mortal e viver sem poderes deveria ser uma opção. Afinal, o ser humano era pior do que as almas sedentas. Mas um casamento obrigado poderia ser pior do que o ser humano. Não poderia? Uma vida eterna de submissão a um casamento imposto era algo terrível... Até mesmo para uma deusa.
     Nop não aceitou a rejeição e prometeu se vingar de Tin. Zeus, misericordioso com o reino em que Tin caíra, disse a Nop que só poderia fazer chover além do limite por ali uma vez por ano. Assim, uma vez por ano em todos os anos, chovia mais do que o normal do que o que acontecia antes. O reino alagava e as pessoas perdiam suas coisas, morriam, acontecendo uma catástrofe.
    Não adiantava o homem orar para o deus que o protegia. Ele não poderia protegê-los, pois Zeus já havia dado a permissão para que Nop fizesse aquilo e o deus protetor não detinha o poder de bater de frente com Zeus, muito menos com a fúria de Nop, que poderia intervir diante de um povo ao qual não fazia parte.
     E os anos foram passando. Sam crescia tão bela como sempre. Ela gostava de sair e conviver com os súditos fora do palácio. E sempre fazia intervenções para ajudar as pessoas, principalmente as que pecavam, dizendo que os deuses ouviam as preces e limpavam os pecados de quem pedia. O que fez com que o povo a amasse e a respeitasse por ela ser misericordiosa.
    O pai de Sam começou a fazer alianças com outros reinos e vinham cavalheiros lindos vindos de vários lugares para conhecer o reino. Ela nunca se interessou por nenhum deles, mesmo que já tivesse a idade para o casório. O pai lhe dizia que ela precisaria se casar. Ele estava ficando velho e precisava que ela se casasse com um homem para ele cuidar do reino por ele. Mas Sam era irredutível e dizia que se a obrigassem a casar, ela fugiria.
    Sam passou pela adolescência sendo uma boa filha, mas nunca aceitando os homens que seu pai trouxera para que conhecesse. Então, adulta, Sam sabia que seu pai estava muito idoso e ela precisaria fazer a difícil escolha entre se casar e agradar ao pai viúvo e à memória da mãe que tanto a amou e cuidou, ao povo que sempre a amou e respeitou, ou se casar e ser infeliz.
    Pela primeira vez, Sam pensava no que deveria fazer de sua vida. Se deveria se casar contra sua vontade ou não. Isso a deixava inquieta e agitada. A angústia estava sempre em seu coração.
     Com vinte e dois anos, Sam se sentou com seu pai e resolveu abrir o coração para o velho homem. Ela confessou que não gostava de homens e que sofreria muito se tivesse que se casar com algum homem. Ela não suportaria e fugiria. Pediu perdão ao pai. Pediu perdão e disse sentir dor por não poder agradar ao povo. Disse que não queria ser esquecida por seu povo, mas preferiria ser esquecida a ser obrigada a se casar sem amor. O prazer da carne só era mais belo quando havia amor. E ela queria o prazer atrelado ao amor.
    Para sua surpresa, o pai disse que daria um ano para ela escolher uma esposa. Se ela escolhesse uma esposa de um reino bondoso, Sam poderia ser a imperatriz e ele mudaria a lei, dando direito para que uma mulher pudesse governar o reino, pois os tempos já eram outros e as leis eram antigas. Portanto, ele poderia refazer a lei. Mas ela precisaria se casar. Era algo ao qual o pai não abriria mão.
     Sam, contrariada, disse que já havia tido a rainha da Inglaterra, Elizabeth I, que governou mesmo sem se casar. O reinado dela havia sido grandioso. O que deu início ao que a Inglaterra se tornaria naquele momento, um lugar poderoso que comandava até a China.
     Porém, seu pai disse apenas que sua mãe e ele estavam quase partindo. Ele não queria que ela ficasse sozinha no mundo. Ela foi achada no meio das flores do jardim e estava solitária, chorando. Ele não queria que ela ficasse sozinha diante de sua ausência. Queria que ela tivesse para quem olhar quando o dia fosse escuro.
    Sam aceitou as palavras do pai e decidiu que tentaria se casar com uma mulher, então. Ela já havia sentido desejo por deusas, em sua vida divina e por mulheres ao longo dos séculos quando era Tin. Sendo uma deusa da luxúria, ela haveria de sentir desejo carnal. Mas ela nunca amou alguém em todos os séculos, nem mesmo platônico, mesmo que sentisse o desejo pelo feminino.
     Sam não sabia que era uma deusa, pois a saída do Olimpo e entrada na Terra faziam com que as lembranças fossem apagadas. Por isso, ela virou um bebê, para ser um recomeço. Mas ela ainda possuía aqueles sentimentos lésbicos dentro dela. E ela tinha medo de nunca saber o que era sentir o amor. O que a fez pensar que, no prazo de um ano, ela não sabia se conseguiria realizar o que o pai pediu. Então, o que restaria à ela seria ter de partir do único lugar onde fora feliz de verdade em toda a sua existência.

Wildest Dreams (REPOSTAGEM REVISADA E MELHORADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora