Capítulo 17

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Na manhã seguinte, Miguel se encontrava ansioso para o próximo treino. O céu estava livre de nuvens e o sol ardia na pele dos alunos, dispersos no campus do colégio Santa Cruz. Algumas garotas, sentadas na arquibancada logo atrás de Miguel, não conseguiam parar de falar a respeito do quanto todo aquele sol fazia mal para a pele, deixando bem claro que "Não saio de casa sem protetor solar, não quero ser uma velha enrugada".

— Então também deveriam parar de fumar cigarros. — segredou Max para Miguel.

Miguel abriu um sorriso largo, apertando os olhos contra o Sol. Estava especialmente animado.
Ele se virou para trás e avistou Z, sentada no topo da arquibancada, com um livro nas mãos. Mesmo a distância de um vôo, Miguel era capaz de reconhecer aquela silhueta, o cabelo cor de cobre fazendo contraste com o céu azul celeste atrás de suas costas. Também tinha aquele jeito de sentar para ler um livro. Ela fazia quase qualquer coisa de uma forma tão única, um tanto insegura, por mais que tentasse demonstrar outra personalidade, mais forte e decidida.

Miguel sabia quem era Z, apenas olhando para ela, para sua forma de agir e de sorrir. A forma como ela prendia as mechas ruivas atrás da orelha quando estava prestes a responder uma pergunta importante, a forma como ela mastigava um sanduíche e conversava com as amigas ao mesmo tempo.

Ela conseguia sentir aquilo também? Que conhecia Miguel, completamente, mesmo sem conhecê-lo de fato, como se já tivesse estado junto dele antes?
Minutos depois, enquanto Miguel alongava as costas tocando o bico de seus tênis, uma grande nuvem cinza cobriu o sol, foi quando Sant surgiu, marchando como um soldado disposto a enfrentar uma guerra, e confrontou Miguel no meio da pista de corrida. Ele se aproximou com passos furiosos e o peito estufado, então descarregou um empurrão contra os ombros de Miguel que o fez cambalear para trás sob o impacto.

Outros alunos que também se alongavam, perderam a atenção na atividade e ergueram as sobrancelhas para os dois valentões.

— Além de invejoso, ainda é ladrão, ein? — gritou Sant.

Miguel deu uma risada furiosa e retribuiu o empurrão. Chamando a atenção do técnico e dos outros corredores.

— Não sei do que você tá falando. — disse ele, um pouco menos alterado que Sant.

Sant saltou sobre Miguel e os dois começaram a trocar socos. Miguel se arrependeria disso na noite daquele dia por conta da dor nas costelas, mas ainda assim, a sensação de bater em Sant foi uma adrenalina essencial para inflar ainda mais o seu ego.

Ele pensou tantas vezes neste momento e ainda assim preferiu evitá-lo por tanto tempo, ainda que convivesse com aquela vontade de deixar os olhos dourados de Sant tão inchados quanto os próprios olhos depois da surra que levou no início do ano. Miguel imaginou que estaria pronto quando acontecesse, que vingaria toda a sua fúria acumulada. Bem, não foi exatamente o que aconteceu.

No mesmo instante que a briga começou, o técnico soprou o apito e correu para separá-los. Miguel nunca soube quem segurou seus braços para trás das costas enquanto observava Sant ser arrastado pelo técnico da mesma forma. Z desceu desesperadamente os degraus da arquibancada para verificar se o namorado estava inteiro.

— Eu vou te pegar, seu merda! — gritava Sant, os cabelos loiros desalinhados e bochechas coradas pelo sangue quente. — Você tá fodido!

Miguel desceu os olhos para os seus pés e encontrou Sant usando um Nike Air.

Ele cuspiu a saliva rosada na pista. Abriu um sorriso vermelho e ergueu o dedo do meio para Sant. Desta vez os socos de Sant não foram fortes como na primeira briga, e assim Miguel provou para si mesmo que estava mais resistente. Estava tudo bem agora que Sant parecia ter a cabeça prestes a explodir de fúria.


Mais tarde, na diretoria da escola, Miguel permaneceu sentado, observando os umbrais das janelas antigas ou os livros empoeirados nas estantes; buscando qualquer coisa que lhe ajudasse a conter o sorriso que ameaçava saltar de seus lábios, enquanto Sant choramingava:

— ... Daí eu acordei no meio da noite com o Beto latindo. Até demorei um bocado para perceber, mas os meus tênis de corrida tinham sumido. — Ele dizia — Esse aí foi quem roubou meus tênis!

Do outro lado da mesa, repleta de papéis e pesos de papéis, o diretor Garvey fazia um lento movimento de meia lua em sua cadeira giratória, os ombros relaxados e os dedos entrelaçados. Até seus olhos vermelhos e entediados entregavam o quanto ele estava afim de resolver aquela estúpida discussão adolescente.

— Você tem alguma prova? — perguntou o diretor Garvey, com a voz fria.

Sant lançou um olhar amargo para Miguel.

— Eu sei que foi ele.

— Não quero decepcioná-lo, senhor Panard, mas você deve saber que há, pelo menos, uma centena de ladrões nesta cidade. — disse Garvey, sua voz se aproximava cada vez mais de um murmúrio.

— Ladrões de tênis? — sibilou Sant.

Miguel mordeu o lábio inferior, ainda assim deixou escapar um ar de riso. Sant olhou para ele de soslaio, seu rosto estava vermelho e Miguel sabia que eles não estavam se atacando apenas porque isso levaria os dois a ter uma detenção juntos.

— Bem, senhor Panard, essa é uma acusação muito séria para discutirmos dessa forma. — disse o diretor Garvey, ficando de pé. — Sugiro que tenha provas antes de me fazer perder tempo outra vez, ok?

— Mas ele...

— E se eu encontrar qualquer um dos dois brigando outra vez, serão expulsos do meu colégio, entendido?

— Você tem que...

— Não quero ouvir mais nada, Santiago, ou terei que recorrer ao seu pai.

Sant bufou, os olhos fumegando.

— Tudo bem.

Os dois levaram suas mochilas nos ombros e saíram da sala do diretor em um silêncio controlado, mas a tensão no ambiente exalava no suor da nuca de Sant. No longo corredor lá fora, Miguel deu as costas para ele e começou a caminhar para as portas de saída.
Sant lhe puxou pela alça da mochila. Miguel se curvou para trás em um impulso súbito.

— Isso não vai ficar assim. Eu vou provar que foi você, Miguel. Juro que vou. — disse ele, em um tom ameaçador, tão cortante que parecia haver cacos de vidro em sua garganta. — Você está fodido, ladrãozinho.

Miguel deixou escapar a risada que prendia há tempos. Puxou a mochila com força mais que o suficiente, se desvencilhando das mãos de Sant, que pareceu assustado (ou impressionado) com a sua reação.

— Faça como quiser, Panard. Eu não me importo. — disse ele, olhando para Sant por cima do ombro. — Por que não manda a polícia lá em casa para buscar seus tênis? Estarei esperando. E, bem, se preferir ir você mesmo, podemos até beber algo enquanto você procura.

Deu uma piscadela para Sant e seguiu em direção a saída. Estava confiante. Ninguém encontraria aqueles tênis, nunca mesmo, porque ele já não passava de um monte de cinzas e borracha derretida agarrada às pequenas molas, no fundo de uma lixeira longe da casa de Miguel.

Não era de tênis novos que Miguel precisava. O que ele queria era a medalha de ouro; e isso significava garantir, a qualquer custo, que ninguém além dele ganharia. Mesmo sabendo que Sant também desejava vencer a qualquer custo e que deveria se preparar para o que Sant podia armar para cima dele.

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