Após o trágico discurso do Sr. Panard, o padre Edgar pediu para que ficassem de pé outra vez, depois deu ordem para que todos ali, vestindo preto e empoleirados como corvos, fizessem uma fila de oração para se despedir do jovem Panard.
De primeira, Miguel não entendeu muito bem o que ele queria dizer com "fila de oração", mas uma orquestra começou a tocar um som celestial enquanto todos na catedral entravam em fila para dar uma última olhada em Sant, deixar suas orações, alguma lembrança ou uma carícia no garoto morto e pálido como o que Miguel sonhou na noite anterior... ou como o que ele viu mais cedo na pista de corrida; Ainda que Sant estivesse bem melhor do que nas visões de Miguel, com parte da boca em falta e os olhos amarelos.
Aquela era a oportunidade pela qual Miguel esperou o dia inteiro. Quando ele levantou para seguir a fila, Max agarrou a barra de seu smoking, forçando-o a se virar.
— Onde está indo? — Max perguntou da mesma forma que fez quando Miguel escapuliu da sala de aula para a pista de corrida mais cedo naquele mesmo dia.
— Estamos indo para a fila. — disse Miguel, como se aquilo fosse óbvio demais.
— O que quer dizer com "estamos"? — sibilou Max, soltando o smoking. — Não me inclua nisso aí, não.
Miguel suspirou.
— Tudo bem, me espera aqui então... — disse Miguel, voltando à fila, que já começava a ficar longa demais.
— Ei, não me deixe sozinho aqui! — disse Max, saltando do banco e vindo logo atrás. Depois segredou próximo ao ombro de Miguel: — Não acredito que estamos fazendo isso. Não sei se entendeu bem o motivo de eu ter sugerido que viéssemos até o velório.
— Se chegamos até aqui — disse Miguel, olhando para Max por cima do ombro. — Acho que devemos nos despedir de Sant de uma forma adequada.
— Não parece estar falando a verdade, Miguel. Mais cedo você nem queria vir e agora está aí todo complacente. Está escondendo algo de mim, não está? Eu sei quando você omite.
— Não sei do que você tá falando. — disse Miguel, dando de ombros. — Agora que sabe que voltei a beber, sabe de tudo.
Estiveram em silêncio nos minutos seguintes, tempo suficiente para que a música celestial se transformasse em um som infernal. Algumas pessoas demoravam mais que outras para se despedir do defunto, em especial a tia Sandra, que até apertou as bochechas de Sant, seu "sobrinho favorito".
Apesar da demora, minuto após minuto, Miguel se via mais próximo ao altar e as coroas de flores, que emitiam aquele estranho aroma de morte. O grande quadro de Sant, no topo dos degraus do altar, começava a se impor sobre Miguel. Ele parecia olhar diretamente para o cara que lhe derrubou para a morte, franzindo o espaço entre as sobrancelhas, com um sorriso cada vez mais maníaco.
Miguel sentiu um calafrio que começou na ponta dos dedos e logo ele começou a evitar o contato visual com o quadro de Sant. Nesse instante percebeu que era a vez de Larissa se despedir do corpo, sussurrando algo para um Sant que não ouvia, se inclinando para beijar sua testa lisa, derramando lágrimas sobre o rosto do morto.
Miguel ainda se sentia embrulhado. Toda aquela cena lhe fazia lembrar da vez em que subiu em um altar parecido com aquele, para se despedir de sua mãe. Na vez anterior um altar com menos degraus, menos flores e apenas uma dúzia de pessoas.
Por fim, chegava a vez de Miguel ver o rosto de Sant uma última vez. E ele odiava admitir que sentia pavor daquilo, porque Max estava certo, ele não estava contando toda a verdade. Não tinha ido até o velório de Sant por conta da sugestão dele; os motivos que trouxeram Miguel até aquele altar eram bem mais físicos, como a corrida com o defunto mais cedo.
O que Miguel precisava mesmo era ter certeza de que Sant estava morto. Precisava ter certeza de que não tinha lhe visto naquela manhã no colégio, pintando seu nome no espelho, fazendo com que ele parecesse um louco.
E esse era o grande problema, não era? Se Sant estava mesmo morto, então Miguel estava mesmo louco...
Larissa finalmente se afastou de Sant, secou os olhos e desceu os degraus do altar em disparada, quase tombando em Miguel. Por um instante ele observou Larissa ir embora às pressas, como quem está prestes a vomitar tudo que comeu nos últimos dias, mas percebeu que agora era a sua vez de se despedir do corpo de Sant.
Ao chegar no topo dos degraus o cheiro das rosas ficou mais forte, fazendo seu embrulho no estômago voltar. Ele dormia feito um anjo, não muito diferente da vez em que Miguel entrou em seu quarto para roubar seus tênis.
Sant estava debaixo de um arco-íris causado pelo reflexo da luz contra os vitrais coloridos com imagens cristãs. O rosto pálido dele estava bem maquiado para esconder cicatrizes profundas, seu terno preto cobria bem toda a parte que foi dilacerada pelo impacto contra as pedras. Ao menos foi isso que Miguel ouviu dizer sobre como Sant foi encontrado, boiando em uma parte rasa do Rio, do outro lado da cidade. Suas mãos estavam juntas e os dedos entrelaçados; havia uma centena de pétalas vermelhas espalhadas ao redor de seu corpo.
Miguel se perguntou o motivo de tanta gente se reunir ao redor do corpo de um defunto, queria saber o porquê de todas aquelas flores, retratos e orações. Por que as pessoas faziam fila para dar um adeus a quem já não estava mais aqui? Por que eles se inclinavam para beijar o morto?
Talvez pelo mesmo motivo que você, pensou aquela parte em sua mente que bancava a esperta. Para ter certeza de que está mesmo morto.
Miguel estendeu a mão e apertou as mãos entrelaçadas de Sant, agora frias como duas pedras. Ele imaginou que aquele seria o momento em que as pálpebras de Sant se moveriam ligeiramente e ele abriria os olhos. Agarraria a mão de Miguel com tanta força que seus dedos ficariam roxos e seus ossos se quebrariam novamente; então Sant sentaria sobre o caixão apenas para dizer que não tinha sido dessa vez que Miguel conseguiu matá-lo.
Mas nada aconteceu. Sant continuou tão imóvel e frio quanto antes. Em seu rosto, Miguel notou que os lábios estavam finos e ressequidos, nada de sorrisos por aqui. Isto, unido a uma parte da pele de Sant com um tom ainda mais pálido, chamou bastante a atenção de Miguel.
Aquela não era a pele de Sant e ele tinha certeza de que a carne também não, sobre sua boca fora enxertado algo para fingir que Sant estava inteiro, quando na verdade lhe faltava parte dos lábios e a carne que lhe contornava. Sem aquele enxerto, Sant iria sorrir exibindo dentes e gengivas para sempre. Da mesma forma que Miguel sonhara na noite passada. Igualzinho como ele viu Sant na pista de corrida.
Ao perceber aquilo Miguel sentiu que o seu estômago havia se transformado em um pano de chão encharcado de vodka e alguém começava a espremê-lo.
Ele soltou a mão do defunto e correu para fora da catedral cobrindo a boca, assim como Larissa fez antes dele.
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Soturno
Mystery / ThrillerMiguel e Z estão ferrados. Quando o Ex-Namorado de Z volta dos mortos para assombra-los, ela e Miguel buscam a ajuda de um duvidoso médium, na tentativa de se livrar do fantasma. Sangue nas mãos: - Qual o envolvimento de Miguel com a morte de Sant...