Capítulo 1

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— Estamos no lugar certo? — perguntou Miguel, cruzando os braços sobre o peito. Os olhos pesados de exaustão dizendo: "por favor, fale que está brincando" para a garota ao seu lado.

A ruiva que Miguel chamava apenas de Z, mostrou para ele o recorte de papel em sua mão. Miguel apertou os olhos sob a pálida iluminação das poucas luzes daquele lado da cidade; as lâmpadas que restavam nos postes cintilavam e ameaçavam deixá-los no completo escuro.

— Sinto em dizer, mas sim. Rua Treze, número 89 — disse Z, comprimindo os lábios. — Não faz essa cara. Você mesmo disse que não tinha um "plano M" para fantasmas. E, se você quer saber, não é nada demais. Vi tanta merda essa semana que pouca coisa pode me assustar agora.

Miguel voltou a encarar o enorme cartaz preso à frente do prédio. Nele foi pintado um grande olho, tão genuíno que o levou a imaginar que o olho piscaria a qualquer instante. Havia uma centena de traços retos ao redor do contorno dos cílios, trazendo movimento à imagem; que até poderia provocar uma ideia de iluminação, se não fosse pela antiga fachada do prédio, com aquelas paredes de pedras cobertas por um musgo que já deixava de ser verde.

Acima e abaixo do olho iluminado lia-se: O grande Hermano está de olho em você

— Ao menos sabemos que ele curte as histórias de George Orwell. — disse Z, tentando forçar um sorriso, mas desistindo logo em seguida.

— Tudo bem. — disse Miguel, por fim. — Vamos acabar logo com isso.

Ele tocou a campainha enferrujada ao lado da porta. Aquele prédio deveria ter ao menos dois séculos desde a construção e Miguel tinha certeza de que nunca houve reforma alguma; olhando para cima ele observou o que pensava ser grandes lascas partidas na parede, mas logo percebeu que se tratava de tábuas cobrindo um par de janelas no primeiro andar.

Miguel suspirou. Aquele lugar lhe causava arrepios. Se pegou pensando no quanto era provável que aqueles arrepios se tratassem da aproximação da entidade; ela poderia tê-lo seguido até ali. Ele olhou ao redor. Não havia nada além da má iluminação e das janelas vazias nos apartamentos abandonados do outro lado da rua. Então por que tinha aquela estranha sensação de que algo lhe observava, espreitando-se na escuridão de cada uma daquelas janelas.

Z olhou em seus olhos.

— Eu sinto frio na barriga; tipo quando algo ruim está para acontecer... — disse ela, como se os pensamentos de Miguel fossem palavras claras flutuando ao redor de sua cabeça. Z acrescentou em um sussurro: — É como ter alguém respirando atrás da minha orelha.

— Puta merda. — Foi tudo o que Miguel conseguiu dizer.

— Aquela coisa não pode vir atrás da gente, não é? Ele está preso na sua cama.

— Temos que ser rápidos. Não tô afim de descobrir.

Ele tocou a campainha mais uma vez, depois outra e uma terceira vez em seguida.

— Por que eu tô começando a achar que não tem ninguém aqui? — disse Miguel, a um passo de ficar exasperado.

Uma voz seca irrompeu da escuridão. Z deu um sobressalto de susto; Miguel até lidou bem com o susto, mas o medo ele não podia controlar e aqueles calafrios sorrateiros voltaram a escalar suas costas, até eriçar os pelos finos em sua nuca.

— Você está no: Consultas mágicas do Grande Hermano — disse a voz que vinha de cima de suas cabeças. — Meu horário para as Sessões de hoje está encerrado. Volte amanhã para ser melhor atendido.

Z lançou um olhar confuso para Miguel.

— É um megafone, olhe. — disse ele, apontando para cima da porta.

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