Payú (Cristiano)
Aquele homem com expressão assustadora, segurando uma arma na mão e minha mãe muito aterrorizada, olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas, e eu pude sentir o medo dela. Medo por ela mesma, mas principalmente por mim.
Tentei gritar, e antes mesmo que eu conseguisse abrir a boca, minha mãe caiu no chão. Eu não entendia o que estava acontecendo, senti um nó na barriga e lágrimas transbordando dos meus olhos. Ela ali, caída na minha frente sem vida, enquanto seu sangue escorria pelo tapete azul claro do chão do meu quarto e ao seu lado, o carrinho de bombeiros que eu segurava em meus braços durante os minutos anteriores em que minha mãe chorava me abraçando forte, fazendo um sinal com o dedo indicador na boca, para que eu fizesse silêncio durante a invasão dos inimigos.
Eu quis abraçar o corpo inerte e ensanguentado da minha mãe, mas tive a arma apontada para minha cabeça e assim como ela, e eu seria o próximo a ter a vida ceifada, se não fosse pelo LC que chegou no exato instante, matando o homem e me salvando.
O assassino, o rosto da minha mãe morta e o som do disparo que a matou, me atormentam desde a infância nos meus pesadelos quase que diários e nas minhas memórias mais sombrias. LC me salvou e até eu dar meu último suspiro, devo minha vida a ele, além do respeito que eu tenho por ele, é claro. E desde então, eu aprendi que sempre será minha vida ou daquele que apontar uma arma pra mim, vai ser sempre matar ou morrer... Não morri naquele dia e nem nos anos seguintes, mas talvez hoje eu não tenha a mesma sorte...
Tento dissipar a lembrança terrível que mesmo no auge dos meus 27 anos, ainda me atormenta, enquanto recarrego meu fuzil com agilidade nos dedos e ódio no coração. É impossível não reviver aquele momento toda vez que uma nova invasão toma conta da favela, seja ela feita por inimigos ou por policiais, como está acontecendo agora.
O calor se mistura ao cheiro de pólvora e suor, enquanto me escondo dentro de uma casa em construção com meu fuzil atravessado por cima do colete a prova de balas, trocando tiros. Meu coração martelando como um tambor ensandecido e o maldito helicóptero da Bope sobrevoa a comunidade, com suas hélices cortando o ar como facas afiadas.
Preciso encontrar meu pai que fez o último contato comigo pelo rádio há algumas horas atrás quando iniciou a invasão.
Assim que o helicóptero se distancia e vejo que está sobrevoando o lado oposto de onde estou, me afasto da parede, meu corpo tenso e preparado. Sinto a textura áspera do tijolo contra minha pele suada, e minha mão segue firme em torno do fuzil.
Saio dali, pulando pelo espaço mais alto, onde futuramente será uma janela e logo meus pés encontram a superfície, exatamente em cima de uma poça de sangue, ao lado do corpo sem vida de um vapor que assim como eu, também segurava um fuzil. Corro pelas vielas trocando tiros com os fardas que também estão fortemente armados, nunca é um bom dia para morrer, mas se hoje for o meu, que assim seja.
O sentimento de lealdade e desespero me consomem, eu já vi muitos parças caírem, e sei que essa invasão está longe de terminar.
Quando cheguei na rua mais próxima a casa do meu pai, tropecei no corpo de uma mulher, olho para o chão e aquilo me quebra, era o corpo da Mara, a minha madrasta. Ela ali, morta, de barriga pra cima, um disparo no peito e uns dois ou três no rosto, quem a acertou, fez com raiva e com certeza sabia que ela era a fiel do meu pai. Ao lado dela, a bolsa de marca cara, assim como a roupa e o calçado, Mara sempre teve tudo de melhor, embora eu nunca tenha visto sentimento de verdade entre ela e o meu pai. Amor é uma parada que não existe, só de pai e mãe e o da minha mãe foi tirado de mim.
A Mara ajudou a me criar, sou grato a isso, mas ela nunca gostou de mim de verdade, na frente do meu pai fingia ser uma madrasta maravilhosa, mas nas costas dele, era fria e distante. Pelo morro, ela vivia tocando o terror com as mulheres que meu pai se envolvia, batendo e ameaçando, mas eles nunca se separaram.
O cheiro de adrenalina pairando no ar é para mim como o combustível para um carro, me dá energia e me faz acelerar o corpo, a mente e o ódio.
Volto para o meio da comunidade, correndo pelas vielas, trocando tiros e matando quem atravessa o meu caminho, como eu já disse, sempre vai ser a minha vida ou daquele que apontar uma arma pra mim e nessas, ainda tô aqui. Eu, que sempre vivi nas sombras da escuridão, estava agora entre a fuga e a batalha, matando, correndo e me escondendo.Fios de luz arrebentados, caixas d'água estouradas, centenas de projéteis espalhados formando um tapete dourado e horripilante entre as estreitas e escuras vielas, além de muito sangue e morte pra todo lado. Esse é retrato do inferno na comunidade nesse instante, um caos inevitável.
O confronto se arrastou por muitas horas e no final de tudo, quando o sol se despedia deixando rastros de cores vibrantes pelo céu, o cansaço tomava conta do meu corpo e da minha mente, enquanto a polícia começava a recuar. Em invasão policial é sempre assim, ou a gente se entrega ou troca tiro até eles recuarem, a segunda opção será sempre a minha, prisão jamais. Eu morro furado a bala, mas preso não vou, nem que eu mesmo tenha que meter uma bala na minha cabeça.
— Fud¢u Payú! — Brand chega correndo com cara de maluco, enquanto eu tô deitado no chão, em frente a boca no final do morro, de barriga pra cima, segurando meu fuzil, totalmente exausto e eu nem sei de onde ele saiu.
— Acabou essa porrä até que enfim? - pergunto sentindo a garganta seca, levantando a cabeça e vendo o Brand com uma cara péssima, de dor e frustração. A dor seria pela perna dele que sangrava, não sei se por tiro ou por algum corte durante a correria pelas vielas. Mas e a frustração?
— Deu ruim, Payú! Não sei como te falar isso...
— Fala logo, carälho! — ordenei, levantando do chão. Minha paciência é curta e hoje ela nem existe. Me sinto tonto pelo cansaço ou talvez por não me alimentar há muitas horas, também preciso de um banho, tomar água e falar com meu pai...
— O PH caiu! — Brand joga as palavras.
Escutei, mas não acreditei. Olhei para ele com incredulidade estampada em minha cara, levantando o dedo indicador, balançando em negativo, tentando afastar aquela possibilidade. Com certeza era um engano, nessas horas as informações sempre são desencontradas.
— Onde tá essa informação, Brand? — Minha voz soou firme, mas o nó na garganta indicava a tempestade de emoções dentro de mim.
— Tá em todas as páginas da internet e o chupa rôla do tenente, acabou de fazer um pronunciamento confirmando! - Brand fala, coça o nariz e abaixa a cabeça. Ele sabe que é a pior notícia que ele poderia me dar.
Meu coração afundou como chumbo. Meu coroa, aquele que me ensinou todos os macetes dessa vida e todo o restante que me fez ser quem eu sou, agora estava indo para atrás das grades? Não, não pode ser.
Engoli em seco, tentando manter a compostura, mesmo com olhos ardendo e ódio inundando meus pensamentos, procurando um baseado nos bolsos, mas não encontro e então saio dali correndo, numa tentativa desesperada e inútil pra tentar encontrar meu pai em algum canto da favela, mesmo sabendo que o Brand não mentiria sobre uma parada dessas.
A vontade que eu tenho é de sair matando todo e qualquer policial que eu encontrasse pelo caminho, como forma de represália. Missão de honra pra mim agora, é tirar meu pai do privado e não vou sossegar até conseguir.
Mas até lá, como fica tudo? Como fica o comando da comunidade?

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Doce pecado do morro
RomanceCristiano, um homem frio, agressivo e temido por muitos, carrega um trauma de infância desde a morte de sua mãe durante uma invasão de facção rival. Ele é o herdeiro do tráfico de drogas, que de uma hora para outra precisa assumir o comando da favel...