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Roseanne e eu paramos no corredor central e olhamos uma para a outra. Aponto para uma poltrona perto da janela e levanto as sobrancelhas. Mantendo os olhos fixos em mim, ela anda de costas até a fileira e se senta. Suas mãos apertam os braços da poltrona como se o avião estivesse em chamas e caindo.

Sento na poltrona do corredor e solto um chiado involuntário, olhando diretamente para as pilhas de coisas que coleciono e que estão a minha frente. Sempre que vou até a cidade, acabo trazendo comigo algo que me chama a atenção. Um quebra-cabeça. Um copo de tequila. Uma Barbie. Um vibrador. Flores. Revistas. Livros. Trago tudo para minha casa, espalho pelas poltronas e corredores e fico olhando pra eles durante horas. As pilhas já chegam ao teto. Jennie sempre me pergunta porque faço isso, mas não tenho uma resposta.

- Não... comer. — grunho para ela, olhando em seus olhos. - Eu... não comer.

Ela fica me encarando. Seus lábios estão comprimidos e pálidos.

Aponto para ela, para minha boca e depois para os meus dentes brancos e ensanguentados. Faço que não com a cabeça. Ela se encolhe mais para perto da janela. Um grito de terror começa a aparecer na garganta dela. Isso não esta dando certo.

- Segura. — falo para ela, soltando um suspiro. - Manter... você segura.

Fico em pé vou até o meu toca-discos. Abro o maleiro e procuro na minha coleção até pegar um LP. Levo o fone de ouvido comigo até a minha poltrona e coloco em Roseanne. Ela continua paralisada com os olhos arregalados.

A vitrola toca Frank Sinatra. Consigo ouvir um pouco da música que sai dos fones, como um elogio distante que flutua no ar do outono.

Last night... when we were young...

Fecho os olhos e me inclino para a frente. Minha cabeça balança no ritmo da música enquanto os versos flutuam pela cabine do avião, se misturando em meus ouvidos.

Life was so new... so real, so right...

- Segura. — eu sussurro. - Manter você... segura.

Quando finalmente abro os olhos, o rosto dela está diferente. O terror sumiu e ela me olha com descrença.

- Quem é você? — ela sussurra.

Viro o rosto para longe dela. Então me levanto e saio do avião. O olhar aturdido dela me segue até sair.

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Tem um Mercedes clássico conversível no estacionamento do aeroporto, e tenho brincado com ele há vários meses. Depois de semanas olhando para ele, descobri como encher o tanque com o conteúdo de um barril que encontrei na sala de triagem das bagagens. Então me lembrei como se virava a chave e ligava o motor depois de empurrar o cadáver seco do dono pra fora do carro. Mas não faço ideia de como dirigir. O melhor que já consegui fazer é dar ré, sair da vaga e bater no Hummer que está perto. Às vezes fico apenas sentada dentro dele com o motor roncando e com as mãos descansando na direção. Fico assim durante horas, apenas olhando para o painel de madeira, torcendo para que uma memória antiga apareça em minha cabeça. Não uma impressão nebulosa ou uma consciência vaga tirada do inconsciente coletivo. Quero algo específico, claro e vivido. Algo que seja meu sem sombra de dúvida.

Encontro-me com Jennie no final da tarde, em sua casa, o banheiro feminino. Ela está sentada diante de uma TV ligada em uma longa extensão e assiste a um filme daqueles eróticos leves de final de noite que achou na bagagem de alguém. Não sei porquê faz isso. Erotismo não tem mais sentido para nós. O sangue não é mais bombeado e a paixão não acontece. Já peguei Jennie com algumas "namoradas" algumas vezes, e em geral elas estão apenas em pé, nuas, olhando uma para a outra. As vezes ficam roçando seus corpos, mas ambas parecem perdidas e cansadas. Talvez seja apenas um tipo de espasmo pós-morte. Um eco distante da grande motivação que já iniciou guerras, inspirou sinfonias e que fez a história humana sair das cavernas e chegar ao espaço. Jennie pode estar se segurando àquilo, mas aqueles dias acabaram. O sexo, que já foi uma lei tão importante quanto a gravidade, agora foi refutado. A equação foi apagada e a lousa quebrada.

Minha namorada é uma zumbi | Chaelisa Onde histórias criam vida. Descubra agora