075. cicatrizes | RAFE

183 7 0
                                    

Ainda não conseguia entender exatamente se foi por puro impulso ou pelo desejo insaciável de fazê-la sorrir - o que era uma ótima desculpa, para ser bem honesto -, mas havia levado minha melhor amiga ao parque de diversões. Não era grande coisa, afinal. O amontoado de brinquedos meio enferrujados ficava há poucos quilômetros do campus, então não foi exatamente um sacrifício.

Suas mãos tremiam quando o colete de proteção feito de aço e ferro se fechou sobre nós. Hailey estava nervosa. Para alguém que costumava fazer tanta estupidez durante a adolescência, ela parecia ter desenvolvido um grande senso de autopreservação durante os dois anos que esteve fora. Se fechasse bem os olhos, ainda conseguia lembrar da vez em que precisei agarrar seu braço para impedi-la de saltar do segundo andar da minha casa simplesmente para se certificar de que não tinha genes felinos. É, isso realmente aconteceu. Depois, teve a festa em que ela subiu na mesa e ameaçou arrancar as roupas na frente de uma centena de pessoas - também precisei salvar ela disso.

E agora, ela estava segurando a minha mãe, como se eu pudesse salvá-la da montanha russa também.

- Cacete, Hailey, o plano é passar pela montanha russa e chegar inteiro. Se continuar desse jeito, minha mão vai ter virado um pó antes de darmos a volta completa. - resmunguei de brincadeira e ela afrouxou os dedos.

O olhar meio apavorado e ansioso se encontrou com o meu. Um meio sorriso surgiu nos seus lábios.

- Perdão.

Quis rir do nervosismo estampado na atmosfera ao seu redor.

- Você confia em mim? - perguntei, molhando os lábios.

- Eu tenho escolha?

O carrinho deu um solavanco e Hailey arregalou tanto os olhos que, por um momento, imaginei que fossem saltar para fora.

- Eu acho que agora não tem mais. - rebati, sentindo os trilhos sendo deixados para trás à medida que subíamos a estrutura enorme de ferro.

Encontrei uma forma de enlaçar nossos dedos. Sua mão estava gelada e transpirava mais do que eu achava possível. Comecei a ficar meio preocupado, mas quando sua risada nervosa cortou o ar, a tensão nos meus ombros se desfez. Hailey era campeã de vivenciar histórias improváveis. Não duvidava que, talvez, pudesse adicionar "a vez em que desmaiei na montanha russa" à sua lista.

Lá do alto dava para enxergar todo o campus e as luzes da cidade vizinha.

- Se eu morrer, nunca mais vou deixar você dormir de madrugada. Eu estou falando sério. - disse, mas sua voz era divertida. - Vou assombrar você por toda eternidade.

Revirei os olhos.

Não seria um desconforto ser assombrado por um fantasma como você, Hailey. Na verdade, seria um prazer. As palavras penderam na minha língua, mas no último segundo o carrinho despencou e deixou todas as frases prontas para trás.

A adrenalina era surreal. Nossos gritos se misturavam com os das demais pessoas e ela esmagou meus dedos com força. Mais ria do que gritava e, naquele momento, me dei conta de uma coisa:

Eu adorava o som da sua gargalhada.

•••

Depois de quase ter vomitado umas três vezes, me arrastei para dentro de uma das lanchonetes do parque. Hailey havia vencido de mim no tiro ao alvo, o que significava que eu lhe devia uma hambúrguer com batatas fritas, maionese e coca cola.

Usei a desculpa de que estava tonto por causa da roda gigante, mas na verdade eu deixei que ela ganhasse. Ela não conseguiria executar um trabalho manual nem que a sua vida inteira dependesse disso. Hailey tremia mais do que conseguia ficar parada e a sua coordenação motora era péssima, mas eu achava fofo. Em contrapartida, seu cérebro era uma máquina.

Achava incrível a sua capacidade de memorizar e raciocinar equações, leis biológicas, reações químicas e tudo isso sem que o seu cérebro explodisse. Enquanto isso, eu não conseguia chegar até o caixa do McDonalds sem ter trocado o meu pedido pelo menos umas cinco vezes.

Com a testa encostada na mesa, levei os dedos até as suas mãos e brinquei com o esmalte rachado das suas unhas. Preto. Ela ficava linda quando vestia preto. Meus olhos se ergueram pelo seu corpo enquanto ela digitava algo no celular, mas se detiveram no seu braço. Eu conhecia Hailey.

Sabia a quantidade exata de açúcar que colocava no café, entendia sua obsessão absurda por romances de época e reconheceria o seu cheiro mesmo há quilômetros de distância. Eu conhecia a história por trás de cada uma das suas cicatrizes: a da perna - quando tento escalar a árvore da casa da sua tia em Nova Jersey -, a do queixo - quando decidiu aprender a andar de patins sozinha - e uma no pé - quando, numa manhã de 4 de julho, decidiu correr descalça pelo quintal da sua casa.

Mas havia uma nova. Duas, na verdade.

Estava escondida pela jaqueta jeans que Hailey havia retirado alguns minutos antes de sentarmos ali. Era grossa e enorme, subia do seu bíceps até o seu ombro. A outra era mais sutil, no pulso. Estava coberta com meia dúzia de pulseira prateadas, mas ainda assim eu pude ver. Não parecia ter sido proposital, mas me intrigava.

Deixei que alguns minutos se passassem antes de tomar coragem e perguntar, com a voz fraca:

- Por que você foi embora?

Sua postura se enrijeceu e a expressão vacilou por alguns instantes.

- Eu precisei.

Meus ombros caíram. Eu não esperava uma resposta, mas ainda assim estava decepcionado. Brincando com seus dedos, mordi o lábio inferior, pensando no que dizer em seguida.

- Eu senti sua falta. - confessei, por fim.

- Eu sei que sentiu. - seus dedos delicados percorreram a palma da minha mão em um carinho contínuo. - Eu também senti, mas o importante é que estamos juntos hoje, né?

Hailey pressionou os lábios em uma linha fina.

Acenei com a cabeça, decidido a suplantar a mágoa passada no meu peito e a curiosidade por algo que não necessariamente me interessava - as suas novas cicatrizes.

- Ei, você lembra de quando você foi na locadora e alugou um filme... Star Wars... - a expressão se suavizou com a lembrança e eu explodi em risadas.

- E era uma versão pornô de Star Wars? - perguntei, tentando recuperar o ar. - Cacete. Você precisava ter visto a sua cara, foi...

- Você queria que eu tivesse ficado confortável com você do meu lado e um filme pornô se desenrolando na minha frente?

Meu abdômen doía.

Ela começou a se defender e a cada vez que lembrava de uma das histórias cômicas e trágicas da nossa adolescência, eu explodia em mais gargalhadas.

Gostava da nostalgia inundando as minhas veias e gostava mais ainda da certeza de que estávamos construindo novas memórias.

Running Away [parte 1] - Rafe Cameron auOnde histórias criam vida. Descubra agora