Vira Mundo, Zona Rural de Matinho, 08:13, PM
Ainda não havia energia elétrica no Vira Mundo, então o hábito de se reunir na sala e conversar sob a luz de um candeeiro ainda era comum. Pilongo, neto de Maria Curadeira, estava sentado num velho sofá com a avó.
— Será que a négia vai demorá muit pra chegá aqui? — Perguntou Pilongo —
A anciã balançou a cabeça fazendo um gesto de negação.
— Num sei não meu fi, é capaiz que ainda vai demorá um bucad. — Disse Maria Curadeira —
Pilongo ficou chateado, mas depois de um tempo se conformou.
— Meu fi, eu vô li contá uma história que pôv mais véi contava. — Anunciou Maria —
Causo de Maria Curadeira:
A Tentação
Antigamente, lá pelos lados do Espírito Santo, vivia uma mulher conhecida como Raposa Danada, mas seu nome verdadeiro era Dolores. A alcunha de "Raposa Danada" surgiu ainda quando Dolores era criança e por azar se encontrou com uma raposa contaminada com o vírus da raiva, o animal avançou rosnando em direção a menina que não teve reação a princípio, somente quando o bicho estava chegando bem perto foi que a jovem Dolores reagiu. Num ato desesperado, Dolores chutou com toda a sua força, o chute acertou a lateral da cabeça da raposa que teve seu pescoço quebrado na hora, o bicho tombou sem vida na beira do carreiro. Na hora do sangue quente, a menina não percebeu, mas havia quebrado o dedão do pé direito ao chutar o animal, a dor só veio depois, boa parte do pé dela ficou com uma cor arroxeada no dia seguinte. E foi assim que Dolores ganhou o apelido de Raposa Danada, no começo ela tentou fazer as pessoas pararem de chamá-la daquele jeito, mas foi em vão.
Dolores cresceu e se tornou uma mulher forte, independente e trabalhadora. Seu marido, Valmir foi trabalhar fora e nunca mais retornou, por isso a criação da filha e do filho do casal ficou a cargo de Dolores. Com a responsabilidade de criar duas crianças praticamente sozinha (às vezes a mãe de Dolores a ajudava) Dolores foi se tornando uma pessoa um tanto quanto amarga e estressada, para descarregar esse estresse, Dolores adquirira o hábito de xingar quando algo dava errado. Os xingamentos mais comuns eram duas palavras: desgraça e miséria que no modo matuto de pronunciar ficam como: disgraça e mizéra. Estas palavras são tidas como tabu para muitas pessoas mais supersticiosas, acredita-se que ao pronunciá-las, a pessoa está atraindo o mal para si ou a tentação, tentação neste contexto significa o próprio mal.
Era Sexta-Feira da Paixão, 07:15 da noite, Dolores estava remendando a tela de arame do galinheiro que havia sido quebrada por algum predador, talvez uma raposa, cachorro do mato ou saruê. Como já estava escuro, a mulher acabou não percebendo que havia uma vara com a ponta cheia de finas lascas de madeira próxima de onde ela estava consertando a tela e acabou batendo as costas da mão direita nesta vara.
— DISGRAÇA! MIZÉRA! — Xingou ela —
Mesmo no escuro Dolores ainda conseguiu ver o líquido vermelho e quente escorrer por sua mão.... algo estranho ocorreu, o sangue que escorria foi esfriando rapidamente, Dolores sentiu um mal-estar, ela levantou e perdeu o equilíbrio ao sentir uma tontura, se não fosse o pé de Algaroba onde ele se agarrou, com certeza a mulher teria caído. Dolores permaneceu apoiando-se no troco da árvore por mais um tempo, esperando que aquela sensação ruim passasse, o sangue continuava a escorrer, frio, agora escorria pelo antebraço já que ela estava com a mão ferida na vertical, segurando no tronco da Algarobeira. Dolores havia perdido a noção do tempo, ela já não sabia se estava ali há minutos ou horas, ela queria voltar para casa, mas temia que a tontura a fizesse perder o equilíbrio e cair. De repete a mulher escutou um rosnado de bicho atrás dela, um suor frio começou a escorrer pelo rosto de Dolores, ela lentamente virou a cabeça para olhar para trás... duas peques luzes se aproximavam vindo de dentro do pasto, aparentemente eram olhos de algum animal que brilhavam no escuro, mas havia algo estranho, a posição dos olhos estava errada, eles pareciam tortos, como se o bicho estivesse com a cabeça virada de lado. O sangue que descia pelo braço da mulher e pingava no cotovelo, agora esfriara ainda mais, parecia até água gelada, os olhos brilhantes se aproximaram mais... quando o bicho finalmente saiu do meio do capim, Dolores pôde ver do que se tratava, era a raposa que ela havia matado muitos anos atrás, a criatura estava parcialmente putrefata, a cabeça estava girada em mais de 30 graus para a esquerda. A raposa morta-viva deu mais um rosnado, era um som horrível, não era como o rosnado de uma raposa normal, parecia com o som de uma pessoa com tuberculose e com as vias respiratórias obstruídas por muco tentando sugar o ar. A aberração caminhou com a cabeça balançando devido ao pescoço quebrado em direção a mulher, Dolores largou do tronco da árvore e tentou correr, mas perdeu o equilíbrio e desceu a ladeira rolando até parar na parte mais baixa onde começava o terreiro da casa. Sem se importar com os machucados da queda, a mulher tentou se levantar, mas conseguiu apenas sair catando cavaco até chegar à porta de casa.
Um tempo depois o marido de Dolores a encontrou caída, toda machucada e falando coisas desconexas, ele tentou conversar com a esposa para entender o que havia acontecido, mas a mulher não conseguia dizer coisa com coisa. Depois de mais alguns minutos, a mãe de Dolores foi chamada, a velha e o marido limparam e trataram dos ferimentos de Dolores e a puseram para descansar na cama do casal. Somente no dia seguinte Dolores foi capaz de explicar o que havia acontecido, a maioria das pessoas não acreditaram na parte da raposa morta-viva, a maioria simplesmente acreditava que Dolores simplesmente havia visto uma raposa normal e talvez pela perda de sangue a mulher tivesse variado (alucinado). Depois desse episódio assombroso, Dolores nunca mais foi até o galinheiro à noite, se fosse necessário ir, outra pessoa teria que fazer essa tarefa.
Fim
Após terminar de ouvir essa narrativa, Pilongo ficou um longo tempo com medo de ir até o galinheiro à noite.
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Gurunga 6
Ficção GeralAcesse esse link para consultar o dicionário da Gurunga https://rangeloblivion.blogspot.com/2020/06/dicioario-da-gurunga.html Baseado em eventos reais NOTA DO AUTOR Este é o sexto livro da série Histórias da Gurunga. Nos livros anteriores os "causos...