the hunger games

A Colheita

A 74ª colheita anual deve ser a última de Jeremy.

Jeremy tem dezessete anos, e fará dezoito antes da próxima colheita, o que significa que ele vai envelhecer e será jogado diretamente para as minas, e não participará mais de um sorteio que envia jovens para um jogo brutal onde ele será obrigado a lutar até a morte.

Seu aniversário ocorre dois dias antes da colheita de cada ano, felizmente, então Jeremy acredita que ele tem um verdadeiro golpe de sorte a esse respeito.

Isaac McCarthy não tem, como se vê. Faltam apenas dois meses para os seus dezoito anos, e se ele tivesse nascido apenas alguns meses antes, ele poderia ter
escapado de seu cruel destino.

Seu nome é o primeiro a ser chamado. Jeremy não consegue evitar olhar no meio da multidão para ver Isaac McCarthy se empurrar lentamente para frente até o palco. Sua tia não está presente, e seu irmão parece prestes a ter um treco — Jeremy tem certeza de que ele se voluntaria no lugar de Isaac, se ele pudesse, mas Lucca já é velho demais para os Jogos Vorazes, o que torna Isaac obrigado a caminhar para uma morte prematura e tortuosa.

Um desejo súbito de levantar as mãos e se voluntariar no lugar de Isaac toma conta de Jeremy. Ele nunca teve muito amor à vida, é claro que não, e ele já pensou mais de uma vez em acabar com a sua própria vida miserável e infeliz. Mas Jeremy também já provou mais de uma vez que ele é um completo covarde. A boca dele se abre, e absolutamente nenhum som sai. Ele não consegue gritar, espernear e pedir para ser enviado no lugar de Isaac. Ele não é maluco, não a esse ponto.

Os Jogos Vorazes... é algo brutal. Não é como Jeremy quer morrer. E uma vez na Capital, a possibilidade de se suicidar antes de chegar na arena dos jogos é nula. Com toda a tecnologia que eles possuem, os cidadãos da Capital de Panem garantem que a morte só será um espetáculo se televisionada na TV.

Um nó se forma na garganta de Jeremy quando ele arrasta seu olhar de Isaac para o palco, onde Ryan já está de pé, sua mandíbula apertada enquanto ele acena para Isaac assim que o mesmo termina de subir os degraus.

Não há dúvida na mente de Jeremy de que Ryan fará de tudo ao seu alcance para garantir que Isaac sobreviva à arena. Ele vai implorar, pedir emprestado e roubar; ele vai ensinar a Isaac tudo o que ele precisa saber. Ryan vai ser o melhor mentor que o distrito deles já viu, e ele vai trazer seu melhor amigo de volta para casa.

Quem quer que seja o outro tributo, Jeremy preventivamente sente pena dele.

— Jeremy Kuling! — É a voz estridente da ceifadora, que transmite o recado para os cidadãos do distrito 12. A ceifadora, contudo, vem diretamente da Capital, e é outra privilegiada que Jeremy já odeia por extensão.

Seu corpo para de funcionar, um pavor horrível se rasteja por suas veias como se fosse gelo. O único pensamento que Jeremy consegue racionalizar é por quê, por quê, por quê? Ao seu lado, os olhos arregalados de Stephanie, uma das poucas cidadãs com alguma posse do distrito 12 e também sua melhor amiga, estão repletos de medo e fúria, e Jeremy não duvida que Stephanie se voluntarie no lugar dele.

Em desespero puro, Jeremy sussurra um Está tudo bem para a melhor amiga, e então começa a caminhar.

Jeremy mentiu, é óbvio que não está tudo bem. Conforme ele anda, a realidade se torna mais palpável. Diversos murmúrios tomam conta da praça pública – local onde a colheita dos tributos sempre ocorrera desde que Jeremy se lembra – e Jeremy sabe muito bem sobre o que as pessoas estão falando.

Isaac McCarthy sempre foi muito óbvio a respeito da sua paixão direcionada a Jeremy. Ele sempre foi bastante vocal sobre isso também. Bobo e apaixonado e instigante, Isaac McCarthy trata-se de um dos cidadãos mais queridos e populares do distrito 12. Não há uma única alma viva que não tenha sido conquistada pelo garoto — Jeremy incluso — e todo mundo que conhece Isaac sabe que ele é apaixonado por Jeremy, sabe-se lá o porquê.

Na Capital, ah, isso provavelmente vai se tornar entretenimento puro.

Esse pensamento irrita profundamente Jeremy, porque são crianças enviadas para morrer, mas a Capital só se comove mesmo é com um romance impossível.

Se é que Jeremy pode chamar o que ele e Isaac tem disso. Não houve qualquer interação minimamente romântica entre Jeremy e Isaac nos últimos anos. Na verdade, nunca houve qualquer interação romântica de verdade entre eles. Jeremy teria sabido.

Quando seus pés chegam no palco, Jeremy está chocado que conseguiu chegar até ali sem desmaiar. Finalmente levantando o olhar, ele encontra quatro pares de olhos arregalados na sua direção, tal qual Stephanie Forbes direcionara a ele apenas alguns segundos atrás. Luto e fúria, uma combinação excelente que Stephanie, Isaac e Ryan partilham, mas em frequências completamente diferentes.

Acima de tudo, Isaac parece irremediavelmente triste. Jeremy entende bem o porquê. Mas há raiva nele também, que Jeremy duvida que qualquer outro cidadão de Panem conseguiria ver. A relação entre eles sempre foi um tópico complexo, no qual Jeremy jogava para o fundo de sua mente e trancafiava em uma gaveta, assim impedindo-se de pensar a respeito, mas Jeremy sempre soube que observar Isaac lhe era seu hobby favorito.

No início, fora curiosidade, dúvida acerca dos sentimentos do rapaz, mas em algum ponto, em algum ponto que Jeremy não saberia distinguir, se tornara interesse.

Quanto à reação de Ryan, bem, Ryan parecia bravo o tempo todo, honestamente. Desde que voltou dos Jogos Vorazes, há três anos, Ryan se manteve chapado e bêbado a maior parte do tempo, o que nunca foi de grande ajuda para os tributos que ele teve que mentoriar. Nos momentos em que estava sóbrio, Ryan Steven se mantinha numa posição absolutamente furiosa e impossível de se conter.

Ryan é o mentor mais novo que os jogos já tiveram, tendo assumido o cargo um ano após a sua vitória. Ele é também o ganhador mais jovem que o distrito 12 já teve, o primeiro em mais de duas décadas, e ele conquistara esse feito com apenas quinze anos.

Quinze anos e muita mais vontade de vencer do que os demais tributos, foi por isso que Ryan voltou para casa. Ao menos, foi o que ele disse na televisão assim que saiu da arena e teve que dar entrevistas. Jeremy lembra de ter feito companhia a Isaac na casa dele naquele dia.

Quando olha nos olhos dele agora, Jeremy tem a sensação de que Isaac está se lembrando da mesma coisa que ele. O único momento em que Jeremy realmente deixou Isaac tocar nele, um simples aperto de mãos que deixou a testa de Jeremy molhada de tanto suor. Ryan havia acabado de ser anunciado como ganhador, e Isaac necessitava de um abraço, mas Jeremy não podia proporcionar isso a ele, então ele lhe estendeu a mão.

Eles nunca mais falaram sobre isso.

Sabendo que, em menos de duas semanas, os dois estarão possivelmente mortos, Jeremy sente que precisa tirar todas as coisas que ele não entende ainda a limpo. Mas como ele poderia fazer isso? A simples ideia de expor seus sentimentos assusta Jeremy mais do que a morte jamais vai assustar.

– Senhoras e senhores, esses são os tributos do distrito 12! – A ceifadora urra, sua voz ainda mais estridente de perto.

Fora do palco, ninguém mais comemora.