02 - Realidade

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Jullian Lopez

Minha cabeça parece pesar uma tonelada e meu corpo está leve, é como se eu não pudesse senti-lo, mas um leve arrepio perpassa minha pele, indicando a mudança de temperatura. Forço meus olhos a se abrir e me sinto tonto com a claridade que toma minha visão. Dói manter os olhos abertos, mas tento ao máximo me acostumar e saber onde estou. Eu me sinto confuso, mas aos poucos as lembranças vão voltando e eu me sinto entrar em puro pânico. Olho ao meu redor, tentando buscar por algo que me ajude, mas paraliso ao me dar conta da situação.

Eu estou em um quarto totalmente branco, isso me remete a um manicômio, principalmente pela luz forte que quase cega meus olhos. Mas o que me deixa atônito é ver mais pessoas ao meu redor, todas com o mesmo olhar de pânico. E não bastando toda a situação aterrorizante, elas estão nuas, assim como eu acabo de perceber que também estou. É automático quando meus braços rodeiam o meu próprio corpo, buscando uma sensação de proteção. Eu quero falar algo, quero gritar e pedir por socorro, mas absolutamente nenhum som sai por minha boca.

Só então meu corpo parece tomar consciência da situação e o frio se faz presente, fazendo com que tremores atravessem meu corpo sem qualquer proteção. Eu me sinto violado, me sinto um nada e me pergunto em silêncio se realmente mereço tudo isso. eu fui vendido. Fui descartado pela pessoa que deveria me proteger acima de qualquer coisa, mas fui tratado como um lixo, como algo sem qualquer importância.

Sinto as lágrimas se acumulando em meus olhos e não é preciso de muito para que elas estejam descendo pelo meu rosto. Fecho meus olhos e mordo meus lábios, tentando impedir os soluços que querem escapar. Mas dói tanto. Eu sempre soube que não havia muito o que esperar da minha vida, mas isso? Meu destino deve ser sofrer.

— Ei, você também é brasileiro? — Uma voz masculina chama minha atenção e abro meus olhos, vendo um garoto mais ou menos da minha idade através da cortina de lágrimas.

— Sim, todos aqui são? — pergunto com a voz embargada, sentindo o nó em minha garganta diminuir um pouco.

— Ao que parece sim. Deus, eu me sinto um estúpido. — Ele diz e diferente de mim não há sinal de choro em seu rosto, apenas a mais pura raiva.

— Você foi vendido também? — questiono e sinto meu peito doer ao proferir essas palavras. O quão cruel é isso?

— Não, eu mesmo me meti nessa merda. Acreditei que era uma oportunidade boa de emprego fora do país, mas olha onde estou... vítima de tráfico humano.

Suas palavras são como um tapa na minha cara e só então me dou conta do que realmente está acontecendo. Volto a olhar ao meu redor e analiso a situação. Há dez pessoas nesse quarto, cinco homens e cinco mulheres, todos com uma média de vinte e cinco anos. E o que me surpreende é ver uma mulher grávida em meio ao grupo.

— Alguns acreditaram em uma oportunidade de emprego, outros foram vendidos como você. — O rapaz ao meu lado diz, após notar meu olhar.

— O que vão fazer com a gente? — pergunto e automaticamente me lembro do homem que estava em minha casa, seu olhar maldoso ainda me causa arrepios.

— Sinceramente? Não faço a mínima ideia, mas sei que boa coisa não é. — Ele responde e se encosta na parede, soltando um suspiro audível. — O pior é saber que não há ninguém lá fora que vai sentir minha falta e vir atrás de mim.

Ouvir isso é como um gatilho, pois eu também não tenho ninguém que vai sentir minha falta. Eu nunca tive amigos, nunca tive um namorado ou uma família e a única pessoa que deveria vir atrás de mim foi a mesma que me colocou nessa situação.

[...]

Não faço ideia de quanto tempo se passa, não há como ter uma noção, mas nesse meio tempo recebemos uma refeição e água. É como se estivessem tratando animais prestes a ir para o matadouro. O rapaz que conversou comigo descobri que se chama Alexandre, tem vinte anos e acreditou que estava prestes a iniciar um trabalho como modelo. Ele disse que passou semanas em contato com essa falsa agencia e chegou a fazer alguns ensaios, mas tudo não passou de uma armação. Descobri que ele já estava aqui antes que eu chegasse, então por isso deduziu a situação quando mais pessoas na mesma situação começaram a chegar.

A cada segundo que se passa eu sinto a ansiedade e medo explodirem dentro de mim, pensando qual será o meu futuro a partir de agora. E nesse momento eu me arrependo de não ter tido a coragem para abandonar aquele homem. Mesmo sendo maltratado desde criança por Lázaro, muitas vezes eu me preocupei com ele e por isso adiei ao máximo minha saída de casa. E para quê? Apenas para ele me tratar como um objeto, apenas para ele provar mais uma vez que nunca se importou comigo. Por isso eu sinto ódio de mim mesmo, pois se eu tivesse sido mais corajoso não estaria agora nessa situação.

Na verdade, parando para pensar... quem deveria ter morrido era eu. Minha mãe deveria estar viva, pois assim ela continuaria fazendo o homem que amava feliz, eu não existiria e muito menos estaria vivendo esse martírio.

Lorenzo Mazza

Suas mãos sujas e imundas tocam meu corpo, me apertando e levando para perto dele. Sinto a ânsia se tornar presente e a bile sobe por minha garganta. Eu grito por ajuda, mas não aparece ninguém. As lágrimas tomam meu rosto e me sinto indefeso, mas eu preciso agir. Não vou passar por isso novamente, não mais! Por isso busco forças e consigo chutar no meio de suas pernas. Saio correndo, mas antes alcanço um vidro pequeno de álcool em gel em cima de sua mesa e lanço sobre as chamas da lareira, vendo o fogo aumentar e pular para fora. Não é surpresa quando algumas labaredas alcançam as cortinas e o fogo começa a se espalhar rapidamente pelo quarto. Não olho para trás quando corro, só paro para pegar a chave da porta e em seguida a fechar, trancando.

Ouço seus gritos raivosos, mas não fico para escutar. Ao invés disso saio correndo pela casa, buscando a saída. O cheiro de fumaça e queimado começa a se fazer presente, mas ao invés do medo eu sinto alívio.

Abro meus olhos e sinto o suor escorrendo por minha testa. É como se eu pudesse realmente sentir o cheiro da fumaça e o calor escaldante. Me sento na cama e fito minhas mãos na penumbra do quarto. É possível ver as marcas das queimaduras que sofri e se eu levar meus dígitos até minha face, em seu lado esquerdo, posso sentir a pele repuxada. Não é uma imagem que alguém queira ver, eu sei que não é bonito e por isso escondo tudo que eu posso. Mas apesar de tudo isso, apesar de me sentir uma aberração em alguns momentos, essas marcas representam a minha liberdade... o dia em que dei fim ao meu pesadelo. E se eu pudesse voltar ao passado, sem pensar duas vezes faria tudo novamente.

Solto um suspiro e miro a janela do quarto, vendo que o dia está começando a amanhecer. Sei que não vou conseguir voltar a dormir, por isso me levanto e me sinto pronto para começar mais um dia.

— Todas as informações que pediu estão em seu e-mail. Foi fácil conseguir o convite, todos querem ter uma boa relação com você — Matteo diz quando chego à cozinha. Ele está preparando nosso café da manhã e se mantém concentrado em sua tarefa de fazer panquecas.

— Isso até eles descobrirem quem eu sou — falo com certo humor.

— O que está longe de acontecer, você será um convidado como qualquer outro. — Ele diz e se vira, vindo até à mesa com um prato cheio de panquecas um pouquinho queimadas.

Assinto diante suas palavras e pego meu tablet, analisando o conteúdo que ele me mandou. Matteo conseguiu a ficha de todas as pessoas traficadas e isso vai ajudar bastante na hora de levá-las para casa. Mas uma em questão me chama a atenção, principalmente por haver um banner chamativo com sua imagem para o leilão de amanhã.

— Jullian? — questiono enquanto analiso os traços do garoto sorridente da foto. Tenho certeza que não é uma imagem recente, pois nela há um sorriso verdadeiro. Seus olhos chegam a se fechar, por isso demoro um tempo para perceber suas írises verdes. O cabelo marrom parece brilhar com uma luz própria.

— Ele será a estrela da noite, estão apostando nele para o maior lance — Matteo responde e me estende uma xicara de café.

— Como ele veio parar nas mãos do Andrea?

— Foi vendido para quitar a dívida do pai. Cem mil reais, nem imagino como deve estar a cabeça dele, assim como dos outros.

— Conversou com Luca? — pergunto e deixo o tablet de lado após dar uma última olhada no rapaz.

— Sim, está tudo pronto. Haverá uma denúncia anônima e nossos homens cuidará para que todos sejam pegos em flagrante.

— Ótimo! Quero acabar com esse filho da puta de uma vez — falo por fim, dando nosso assunto por encerrado.

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Primeira atualização de 2024!!! Feliz Ano Novo, Jujubas!!!

Bjus da Juh 😘😘

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