29. É aqui que continua p. II

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Adora entra na sala com as bochechas levemente coradas, um pequeno sorriso no rosto e meio curvada, como se estivesse tímida. E pela primeira vez desde que a conheci, tenho a impressão de que nosso guarda-roupa está espelhado. Ela usa um terninho azul-claro com saltos baixos pretos, tem no rosto uma maquiagem sutil e o cabelo está repartido ao meio, bem preso em um rabo de cavalo.

Nossa vestimenta é o primeiro sinal ruim que capto. Isso porque tenho consciência de que não estou parecendo eu mesma, e sim uma versão genérica de algo que pensei que deveria ser. E mesmo que só isso já não fosse o suficiente para causar uma impressão muito errada, o pior de tudo é Jandir sentado do meu lado, sendo ele o segundo sinal ruim. Ele é como uma bomba relógio, pois, se eu levei segundos para montar um cenário catastrófico, ela, depois de Hope, vai levar metade do tempo e criar cenários bem piores.

Nas últimas semanas, com a questão da identidade do meu filho pairando entre nós, eu lidei bastante com a ansiedade; taquicardia, tremores, enjoos, ânsias de vômito, dores de cabeça, musculares. Sem contar aquela sensação de nó apertando a garganta e o peito. Os pensamentos intrusivos, o cansaço, a culpa constante. É engraçado pensar sobre isso, porque, alguns dias atrás, eu poderia ter dito facilmente que estava passando por período horrível. Um dos meus piores, e olha que já houveram vários. Que piada. Nada disso me preparou para o que estou sentindo agora. Tudo o que eu senti antes foi fichinha, brincadeira de criança, se comparado à isso.

É como se tudo acontecesse rápido e em câmera lenta ao mesmo tempo. Como um daqueles momentos em que a gente sabe que depois daquele ponto, não tem mais volta. Simples assim. Não importa o que possamos vir a fazer depois, as coisas nunca mais voltaram a ser como eram antes. E desejamos ter prestado mais atenção.

"... e fui chamada pra dar uma palestra numa escola chique hoje"

"vc consegue! arrasa com eles!"

Aproveitado mais os bons momentos.

"Eu adoro fazer isso com você"

"Minha cabeça descansa em seu peito, nossas pernas emaranhadas, enquanto recebo um carinho gostoso no couro cabeludo"

Dito as coisas que queríamos enquanto ainda tínhamos tempo.

"Por gostar de mim, é o que não respondo"

"Observando as estrelas através do vidro, desejo que elas me ajudem a ter coragem para ser honesta com Adora"

Porque sabemos que a partir daquele momento não importa mais. Acabou.

Então, meu coração dispara tão rápido que consigo ouvi-lo em meus ouvidos. Meu corpo fica trêmulo, meu estômago revira e meu coração fica tão apertado no meu peito que é difícil respirar. Mas eu não reajo, apesar de querer. Não corro, não vomito e nem choro. Apenas assisto. Assisto, quieta, o momento em que a mulher que eu amo... A mulher que escalou tão bravamente todas as minhas barreiras e construiu um cantinho dentro de mim, começa a me odiar.

— O que foi? — Por algum milagre, ouço Jandir perguntar.

— Nada — respondo. Minha voz soa robótica.

Volto a assistir.

Acontece tão natural como o cair da noite.

Adora entra, seus olhos varrem rapidamente a primeira fileira e ela começa a falar cumprimentos enquanto caminha devagar, fazendo gestos com as mãos. E aí;

— ... é essencial observar estes sinais, já que, muita das vezes-

Ela me vê.

E, entre nós, parece que tudo para.

Você é tudo o que eu quero (Catradora +18)Onde histórias criam vida. Descubra agora