I - Cacos

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   Fincou a espada na terra úmida como se não pretendesse tirá-la dali. Fez isso com toda firmeza que a única mão lhe permitia.

  — Ainda está acordado? — A vozinha tagarela perguntou. Grimm cerrou os dentes, queria ficar sozinho, só por um segundo.

  A mata fechada às vezes o permitia ficar assim por horas, caminhando sem parar e tentando achar o trajeto de volta até a torre oculta de Merlin depois que a noite já tivesse caído. Dessa vez tinha rompido o cronograma ao não conseguir dormir, a chuva tinha o despertado de um sono inquieto e o levado a tropeçar por lama e espinheiros soltos.

    Tinha se enredado naquele selvagem bosque denominado Pennpoin, no sul da Grã Ilha, lar dos Homens. Suas trilhas eram tão virgens que pareciam ter sido feitas por animais e não por humanos, seu orvalho e suas caladas matas úmidas não conheciam senhor algum. Em tese estavam sob o jugo de reis, duques e jarls mas, na realidade, era uma terra intocada.

   Quis andar mais um pouco antes de revelar sua posição para Merlin. O menino tinha boas intenções mas não tinha tato algum e Grimm era praticamente um selvagem, se sentia dor queria ficar sentindo dor sozinho. O braço...ainda doía, ainda que não fosse de forma física.

   Olhou para uma poça e viu um homem em cacos. Era sedutor deixar de lado o conhecimento de quem era aquele homem. O rosto acobreado estava com uma barba por fazer, os olhos cor de âmbar pesavam com olheiras fundas e os cabelos  cacheados e escuros pareciam um ninho de sujeira. Estava fraco e faminto, com frio e abatido.

   — Merlin — Grimm chamou o menino, enfim. Seu corpo estava coberto pelo manto de escamas de prata e a água da chuva escorria por elas.

   — Sim? — O menino surgiu no meio do arvoredo. Estava com o manto de retalhos e se protegia vigorosamente da chuva. — Olha, como o responsável pela sua recuperação, eu tenho que te assegurar que não é sens... —

  — Há alguma magia para...restaurar um braço? — Não olhou o mago nos olhos e até o tom foi distante, ainda que o vento não fosse o suficiente para abrandar a voz.
  
   O silêncio foi constrangedor de tal forma que se arrependeu de ter feito essa pergunta quase imediatamente. A conversa da chuva e do vento foi a única que perseverou, ruidosa e inconveniente mas constante.
 
   — Sinto muito — O tom foi tão triste que Grimm se sentiu culpado por ter sido grosseiro com o menino até agora.

   Ele estava se esforçando para vencer aquela cabeça dura e deixar o maltrapilho sem nome em condições de saúde mínimas para que fossem até Visla atrás de um atendimento digno. Quem não colaborava era Grimm, o rapaz era um idiota completo em não perceber como estava reproduzindo suas frustrações em outras pessoas.

   — Não...eu que sinto muito, você não tem culpa de ter feito isso — Grimm suspirou e, não sabendo se estava soando sarcástico ou não, acrescentou. — É sério. Você não tem culpa da situação ser frustrante e tudo mais —

   Já tinha tentado manusear Ignis com a mão esquerda mas era como uma criança desajeitada. Tinha perdido mais da metade de sua habilidade e desconfiava que não conseguiria lutar de igual para igual nem com um camponês acamado se este lutasse o suficiente pela própria vida. Ignis era inútil, por mais horrível que essa frase pudesse parecer se fosse dita em voz alta.

   — Vai...deixar ela aqui? — O mago apontou para o chão terroso e para a espada ali enterrada. O coração mole do guerreiro não lidava bem com a lâmina ali recebendo chuva.

   — Não... não me sinto digno de usar ela agora — Cerrou os dentes. "Talvez nunca vá voltar a empunhá-la". Seguiu Merlin até a torre. Passaram pelas runas de proteção e pelo macabro crânio de veado que mirava a imensidão da mata escura para além da clareira.

As Crônicas de Desejo e Ruína - II Onde histórias criam vida. Descubra agora