VIII - Jurado de Morte

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   Seu corpo inteiro queimava, sua perna o forçava a arrastá-la e sempre havia a possibilidade de cascos de cavalo em seu encalço. E a perspectiva da noite sempre se avizinhar com mais terrores era irritante.

   Ao menos estava vivo, claro. Grimm de Feralind e Merlin seguiam para oeste, na mesma direção que o Vento ia, mesmo abatidos por conta dos combates mais recentes. O guerreiro tinha aguentado uma madrugada inteira contra a Incursio, não sem danos, e a exaustão cobrava seus efeitos.

   Se lembrou de um tempo, que parecia ter sido há séculos atrás, de quando Beatrice o fizera ter seu primeiro sono tranquilo em anos. Ela o fizera vencer tudo e descansar, apesar da tempestade que habitava seu coração. Mas Beatrice estava longe, com seu povo e guerreando a um mar de distância, e sua única companhia eram Merlin e as lavouras de trigo e centeio no interior da Grã Ilha.

   As coisas tomaram um novo rumo quando a fada acordou. Grimm sentiu algo batendo contra seu manto e sentou-se na relva à beira da trilha, depois tirou a lâmpada e a colocou à sua frente. Observou com fascínio.

   — Escutem aqui vocês! Não houve direito algum em invadir os bosques, destruí-los e... — A fada ralhava com uma vozinha fina mas cheia de fúria. Parou e sua expressão se tornou confusa. — Quem é você? —

    — Ah...eu? — O servo do fogo deu um sorriso constrangido. — Me chamo Grimm...um prazer conhecê-la... —

    — Humm...pode me chamar de Bétula — Ela piscou com os olhos profundamente escuros. — Você não se parece com um Homem Vermelho. Mas é um Homem —

    Não poderia negar que era um Homem, então ficou quieto. Aproveitou desse momento para admirar a fada e ela era como uma mulher, linda e terrível, mas com tamanho o suficiente para caber na palma da mão. Sua pele era de um verde fosco e seus cabelos prateados eram a única coisa que cobria a nudez do torso.

    Além de que, claro, ela tinha asas. Não asas de pássaro cheias de penas, mas sim asas de borboleta. Translúcidas, mas refletindo como um caleidoscópio as cores da luz que lhes atravessavam. Assim era Bétula, bela e assombrosa, talvez um dos seres mais fantásticos que ele vira e ainda veria ao longo da sua jornada pela Terra dos Mortais.

    — Criança? Criança Homem? Homem Criança? — A fada começou a chamá-lo, confusa.

   — Perdão, perdão...eu só estava distraído com a beleza da senhora — Grimm sabia onde tinha sentido esse mesmo assombro. Em Illuvendel. — Sim, sou um Homem mortal. Sou um mestre do fogo, herdeiro do Templo de Prometheia —

    — Um mestre do fogo! Oh, fazem tantos anos! Tantas décadas! Quem foi o último a me ver? Dagmor, Teossian ou Sibila? Tenho tanta saudade... — Bétula estava nostálgica, feliz, mas em sua satisfação acabou por esbarrar no vidro do recipiente. Algo nisso a despertou tristeza. — Acabou-se isso. Há anos...tantos anos —

   Grimm também fechou a expressão, triste, e então tomou novamente a lâmpada nas mãos. Removeu a tampa e esperou, até que Bétula voasse para fora, mas a fada paralisou de susto.

    — O que foi? — O rapaz arqueou uma sombrancelha.

    — Você me libertou — Ela murmurou, como se isso fosse a coisa mais impressionante do mundo.

   — Sim, e? —
 
   — Não vai pedir nada em troca? —

   — Por que eu pediria algo em troca? É ridículo, eu quis te libertar e é isso que eu fiz. Só isso —

   Os dois se encararam por um longo tempo, Merlin olhava logo atrás. Não interferiu, isso era bom. Talvez estragasse toda a tentativa de Grimm de parecer simpático.

As Crônicas de Desejo e Ruína - II Onde histórias criam vida. Descubra agora