II - Incursio

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  — Eu...eu... —

  Tentou se esconder daquele olhar vazio mas não conseguia. Não importava o quanto se afastasse da janela, sentia que estava sendo observado friamente. E os olhos deitados sobre si causavam um medo irracional, uma ansiedade inexplicável que fazia seu coração ribombar.

   Levou a mão ao peito e segurou com força a túnica. Suor gelado escorria pela sua testa e seu corpo tinha fraqueza inexplicável, tremia como se estivesse com frio. As Forças da Noite não se aproximavam mais do que as runas permitiam, mas isso não quer dizer que não tentaram, suas mãos tocavam o ar como se analisassem uma parede invisível e a forçassem.

  — Os encantamentos não são o suficiente para segurar uma Incursio por muito tempo — Merlin murmurou, não tinha nem de longe o mesmo terror que Grimm sentia, embora estivesse pálido e amedrontado.

   — Então você sabe o que são essas coisas... — Grimm exclamou.

  — Pra começo de conversa, é uma só coisa, não "coisas". E sim...eu sei o que é isso — Merlin murmurou enquanto descia as escadas já com o cajado de madeira enrugada. — Mas não sei por que isso está aqui —

  — Então o que é essa coisa? Talvez saber me refresque a memória... — Falou com a respiração arfante.
 
   — Uma maldição. Um tipo de maldição que não deveria nem existir, sabe? Magia de sangue do tipo mais terrível e esquecido, não sei sequer como começar a fazer — Teve um calafrio. — Para falar a verdade, só ouvi histórias...para falar a verdade mais ainda, são histórias irreais de seres da noite que atacam quando escurece...pareciam só contos de assustar crianças...—

   Grimm se levantou e imediatamente colocou o manto de escamas de prata sobre o corpo. Atou a adaga no cinto e abriu e fechou a mão algumas vezes. Estava pronto, a sensação de simplesmente estar em risco de vida lhe injetava um ânimo incompreensível, a chama dentro dele dançava com vigor. Mesmo assim, sua mão suava frio.

   — Você disse que a barreira não vai aguentar? — Perguntou com um sorriso, mas seu coração ribombava.

  — Sim...a melhor opção é fugir... — Os dois se olharam e acenaram com a cabeça. Merlin mirou longamente a sua sala com um semblante de dúvida, uma dor silenciosa. Não reclamou quando saíram pela porta da frente e começaram a correr para longe da torre, para a grama e a noite cerrada chuvosa. A tempestade estava forte, firme e ruidosa, não dava trégua alguma.

    Dispararam para fora da clareira em direção ao bosque cerrado, passaram pelas runas e se sentiram quase nus. Deixando o único escudo que os separava da ação daquelas coisas. Seus calçados brigavam contra a lama e faziam o simples ato de correr mais difícil do que o pretendido, o solado arrastava e água infiltrava como em um bote furado.

   Grimm rasgava os tornozelos nos espinheiros baixos e nas pedras soltas pelo caminho, tropeçando mais do que seria sensato. A ansiedade foi tomando conta novamente do seu peito e os tremores tornavam ainda mais impossível correr sem esbarrar várias vezes em obstáculos. Houve um momento em que tropeçou e caiu de joelhos no lamaçal.

  — Tudo bem? Consegue se levantar? — Ouviu Merlin gritar contra o rugir da tempestade.

  — Tá tudo tranquilo... — Balbuciou mas suas pernas tremiam demais para conseguir se erguer.

  Olhou para frente e um relâmpago iluminou subitamente a trilha. Um longo trajeto escuro por dentro de metros e mais metros de floresta. O trovão subsequente veio acompanhado de um barulho firme como couro...como o rumorejar de asas alçando vôo.

   Mais um segundo e com ele o segundo relâmpago. Uma silhueta escura recortada a frente deles, pousando com suas longas asas escuras. Olhando de perto, Grimm percebia que não era uma silhueta, era uma sombra alta feita de uma viscosa escuridão a derreter, pingar pelo chão próximo e  acinzentar as folhas e mato onde caía.

As Crônicas de Desejo e Ruína - II Onde histórias criam vida. Descubra agora