Sabiá

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- Dorotéia...? - Veio em um sussurro baixo.

- Você tá vivo?! - Passos lentos andavam raspando pelo chão, seu rosto nem lacrimejava mais,  agora era tomado por um ar confuso. - O que está acontecendo...?

- Eu sabia! EU SABIA! Eu sabia que você não tinha morrido! - Dorotéia foi se aproximando de Juninho, empurrando Karlene seu rosto, ainda com a marca avermelhada , levou um leve sorriso ao gritar aquelas palavras. - Eu sabia....- seu sorriso desapareceu, e ele se colocou a chorar novamente.

- Dorotéia se acalme! - o pedido de Karlene era tanto improvável quanto impossível. Juninho se aproximou mais da irmã, lembrou de todas as outras vezes que a olhou de fora da janela, parrado na rua de terra como um fantasma que levaria a sua alma. Bom, sua alma ele já tinha, ele estava marcado em todas as paredes de Santo Aré.

Os dois se abraçaram, e durante os dois segundos todos da sala permaneceram em silêncio. Parecia que hoje os raios de sol que vinham pela janela estavam mais quentes. Mas é claro que Edmilson tinha que atrapalhar.

- Primeiro...o que aconteceu com seu rosto? - Edmilson se levantou da poltrona em que acompanhava. - Parece até que levou uma surra. - Dorotéia se soltou de seu irmão , todavia quando se virou, ficou muda. Não imaginava que podia contar o que tinha visto, talvez seria apenas se colocar em risco mais uma vez, seria melhor se ela levasse seus segredos para serem falados apenas em seu velório. 

- O que você acha? - Dorotéia sussurrou para Juninho parar, mas ele já tinha ido longe demais - Seu pai fez merda!

- Do que você tá falando? Você nem conhece meu pai. - O tom de Edmilson tentava se manter baixo. 

- Aé? Vamos lá então, quem você acha que o conhece melhor? A sua mão direita por mais de cinco anos, ou o filhinho de papai?

Karlene imaginou que Edmilson não sabia como responder, imaginou ele chamando Juninho de traidor ou coisa parecida, imaginou até o coitado do homem-cavalo levando o que seria o terceiro ou quarto soco do dia. O silencio era um sinal, Edmilson realmente tinha cavado naquela conversa seu próprio buraco. Então, pegou na mão de Dorotéia e a levou para a cozinha, talvez um lugar mais reservado acalmaria a menina.

- Vocês dois calem a boca...- deu seu último comando para eles - Dorotéia, o que aconteceu?

- Karlene...- a menina estava prestes a se desabar de novo - mainha me bateu...- ela soluçava...eu vi ela....com o Senhor Jorge

- Você...- Karlene foi buscar um copo de água, abriu a gaveta, escolheu um de vidro, decorado nas bordas com pequenos morangos e foi encher no filtro de barro - Você acha que ela...está traindo seu pai?

- Eu...eu tenho é certeza, se eu fosse corajosa eu contava ainda hoje para ele. -Suas mãos tremulas, e um pouco vermelhas, pegaram o copo. - Mas e se ela me expulsar, eu faço oque? Me jogar pelas ruas por ai e ir parar na água de poço?

- Dorotéia...não fale assim. - A menina segurou o copo com mais força.

- Você é tão estudada, mas eu não. Se eu for para cidade... eles vão é me comer viva...será que eu tenho um gosto bom?

-Dorotéia, Dorotéia! Você acha mesmo que eu vou deixar que façam isso com você? Se quiser que seu pai saiba, volte lá e conte para ele! - Doroteia tremeu.

- NÃO! Eu não posso voltar para lá! Mainha vai me matar! - Levantou rapidamente, deixando o copo que estava em sua mão cair no chão. Se estraçalhando em mil pedaços pelo tapete. - Eu não posso!

- Você tem que voltar! Jorge não vai ficar fora de casa para sempre. - Karlene sentiu um dos cacos de vidro cortar a barra de sua calça, mas tentou permanecer calma. 

O barulho do acidente chamou Juninho e Edmilson, enquanto um foi catar os cacos, o outro ficou apenas observando da sala, parecia que estava sozinho de novo. 

- Juninho...? - Dorotéia clamou, inutilmente.

- Ela está certa, aquele homem é mais perigoso que nossa mãe, ela não iria fazer nada contra sua própria filha. - Juninho parou e olhou para o resto de vidro, pegando um dos cacos decorados - talvez ela até agradeça que você não terminou como eu...que você não toma mais aquela droga. 

Ela olhou os dois em silencio, mas se levantou, e antes mesmo de dar algum passo, anunciou:
- Eu vou, mas eu volto. - E foi embora, passando pela sala não teve coragem de dirigir nenhuma palavra a Edmilson, antes o olhava com paixão, agora apenas sentia uma certa agonia. Abriu a porta com força, raspando contra a madeira do chão, e nem teve a destreza de fecha-la antes de sair andando pela rua de terra. Juninho por um momento queria ir com ela, dizer para sua mãe, que mesmo sabendo da verdade ainda chorava pelas noites quentes, que estava de volta.

Edmilson o segurou pelo antebraço, dando seu olhar torto repentino e sussurrando, perto demais para ser ameaçador, "Você fica." Karlene, diferente dos dois, parecia estar cansada o suficiente para ignorar sua situação.
- Edmilson, eu vou subir. Amarra ele de novo, eu não confio nessas portas estragadas. - E assim Edmilson fez, diferente da primeira vez, prender Juninho foi até fácil, era estranho ver o passarinho entrar por bem em sua gaiola.

- Desistiu de fugir? - Juninho não respondeu a seus comentários esnobes, permaneceu com sua cabeça tombada para baixo. - Se você continuar assim eu posso até afrouxar a corda depois. - Deu um riso leve enquanto terminava o nó e se jogava no sofá. 

A noite caiu cedo, o verão já vinha acabando e esse fim era mostrado no crepúsculo adiantado. Edmilson descobrira que Juninho conseguia dormir sentado. Mesmo assim, como dizem os filósofos, o homem nasce bom, e decidiu levar ele até um dos colchões finos de seu quarto. Dando uma última olhada para trás antes de fechar a janela e a bater a porta. 

E seu pai o esperava na sala. 

Jorge as vezes até parecia um homem normal, com habilidades culinárias descritas apenas com "o suficiente". Portanto, fez para o filho, um arroz queimado. 

Os dois saíram para a sala de jantar, com tantas cadeiras vazias, era um pouco estranho. Edmilson era o único que sobrou para deliciar do prato queimado. O gosto era ruim. 

- Então filho, sua amiga...foi embora?

- Karlene? Não, não, ela só está cansada, foi dormir cedo pra variar. - Alguns segundos de silencio permearam a escuridão que os redondeava, afinal a única lâmpada que precisava estar acesa era a do lustre, logo acima de suas cabeças. - Mas, por que você voltou para cá? Do nada...

- Do nada? Eu queria voltar aqui a muito tempo, muito melhor aqui do que lá na cidade, muito barulho, muito estresse parece que envelhece a gente mais rápido. - parou para dar uma garfada em seu arroz - além disso, eu também tinha que ver uns negócio de documento...

- Documento?

- É...juntar os documentos para vender dos galpões sabe, não está adiantando mais manter lá, - começou a murmurar para si mesmo - o que deu certo agora deu errado. - aumentou novamente seu tom - É que esses fazendeiro pede tudo né, ai tem que ficar nesse vai e vem.

Edmilson parou de respirar por cerca de dois segundos e meio, seu garfo travou na metade do movimento, fazendo seu braço ligeiramente tremer. 'tem mais?'. Esperava que não, rezava que não, já se sentia mal por Juni-Jonas, imagina se houvessem mais! 

- Filho? - Edmilson se concertou na cadeira, o assento personalizado, feito por um artista da carpintaria, estava muito mais desconfortável naquele momento. - Onde você deixou o Jonas?

- Lá em cima.

- Que bom, deixa ele descansar. Você tá quase terminando a faculdade né? 

- Mais ou menos...

- É que eu já estou ficando cansado...e seu irmão não quer nada na vida, mas é bom saber que pelo menos você vai ficar por aqui. - Jorge se levantou - Eu vou subir, já está tarde demais para essas conversas.

Edmilson ficou sozinho na sala de jantar, olhou um pouco para o lustre, olhou  para a janela, olhou para a escada. Mas ele olhou muito mais foi para o chão, que papel era aquele?


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