Mas no final da única rua da pequena cidade, Dorotéia voltava para casa depois de se divertir com o padre Bruno, em passos lentos, cansados, tremidos. Honestamente se olhava agora com um pouco de vergonha, nunca pensou que se encontraria dessa forma. Voltando sozinha, a noite, com o resto dos fogos de artificio clandestinos soando ao fundo. Tanta humilhação.
Queria chegar da forma mais silenciosa possível, já diminuindo seu passo ao ver sua casa, ainda obstruída pela grande arvore do centro da cidade, como se o próprio lugar estava também escondendo coisas sobre a situação.
E quando os galhos quase infinitamente interconectados finalmente saíram de sua visão, Dorotéia parou.
Suas pernas se recusavam a continuar, sua garganta sentiu a ardência das paredes secas e suas pálpebras superiores levantaram o suficiente para confirmar o que estava vendo.
Um carro.
Todavia não apenas um carro comum, não apenas uma das picapes destroçadas que apareciam subitamente nos campos dos arredores da cidade. Em vez disso, era um Volkswagen Saveiro Robust Cabine Dupla, mas ela não sabia disso, então para Dorotéia era apenas um carro em condições extremamente melhores do que qualquer outros.
E ela sabia exatamente de quem era.
Respirou, fechou os olhos e, indo contra seu corpo, continuou pela estrada. Percebeu o portão do quintal encostado, não fechado, com o arame que o segurava não estando visivelmente por perto. Seu pai diligente nunca deixaria a casa assim, pronta pra ser atacada, os cabelos brancos cresciam mas essa parte de sua cabeça nunca perderia.
Então quem estava lá?
Entrou se esgueirando pelas estreitas do muro, se abaixando para não ser visível do interior da casa, se sentia uma criminosa, só não sabia ainda o que estava furtando.Rodeou o quintal até que parou na janela da cozinha, o cômodo em que sua mãe mais passava o tempo. Mas em vez de seus ocasionais quitutes com gostos que causam ligeiras estranhezas, os sons que vinham eram outros.
Dorotéia viu sua mãe agarrada no homem da capital. De camisa social, gravata e cabelo preto, ele ia dançando com ela uma dança efervescente, entre os pratos e panelas os dois trocavam amores, estavam mais quentes que o fogo que fervia a água pro café.
E Dorotéia olhava, em horror. Seu olhos tremiam como de um lado para o outro, como um pendulo de fui curto, derramando sobre sua pele morena, que por um momento perdeu sua cor, pequenas gotas salgadas. Se escondeu de novo atrás da parede, seu peito subindo e descendo, sua respiração ficando cada vez mais rápida.
E sua mente rapidamente perdia sua lucidez, repetindo a frase inacabada.
- Não-não, não pode... não pode ser...Saiu correndo o mais rápido que podia, provavelmente derrubando alguns vasos de flor. É uma pena que em seu estado de loucura passageira não tenha tido cuidado o suficiente para ser silenciosa. Sentiu os olhos negros furando suas costas, ele estava olhando.
Sua cabeça ardeu em dor e por um momento sua visão se tornou borrada, levando-se ao chão. O vestido bege manchado agora do marrom avermelhado da terra abaixo, numa tentativa de se arrastar acabou apenas raspando suas mãos.Logo viu ele se aproximando cada vez mais. Passando do portão de madeira uma figura esguia e alta. Com o sol o contrapondo, o homem permanecia com o roto escondido pela escuridão.
- Olha como você cresceu, nem parece a menininha de anos atrás. - Ele estendeu a mão para Dorotéia se levantar, sendo possível ver as dobradiças em sua camisa desarrumada e o suor em sua pele.- Obrigada...
- Jorge, não se lembra de mim? - Vendo Dorotéia pegando sua mão, o homem sorriu - Realmente faz um tempo que eu não venho visita.
- É...desde a morte da a Ro- Ela foi interrompida
- Não, não precisamos falar de coisas trustes não é? - Ele disse entre risadas anasaladas.
- É...o senhor tem razão. - Seus olhos o evitavam - Eu...eu vou entrando então. Até...- Estranhamente, ao passar pelo portão, Dorotéia sentiu os passos do homem a seguindo - Você...o senhor vai ficar para o almoço?
- Ah mas é claro, quem aguenta ficar sem comer a comida de sua mãe?
Na janela da casa dos Jorges, nome carinhosamente dado aos filhos e a mulher de Jorge, Um olho escuro e estressado nem sequer piscava a observar a janela.
- Karlene, é ele mesmo. - Edmilson agora rodava de um lado para o outro na sala, desarrumando o tapete vermelho, com estampa de flores e comprado especialmente por sua finada mãe Rosana, a cada volta.- Tem certeza Edmilson? Olhou direito?
- Claro que eu olhei direito, nunca tive miopia, agora mesmo que não vou ter. - Levou a mão a cabeça - Agora o que fazemos com ele?
Karlene tinha que admitir, o susto foi tão forte que quase...quase se esqueceu que o homem, e as vezes cavalo, que era Juninho, estava amarrado em uma cadeira da mesa de jantar no meio da sala.
Haviam interrogado o coitado, se ainda podiam o chamar como tal, desde ontem a noite. Edmilson não havia parado nem para suas seis horas diárias de sono, suas olheiras estando piores do que na época da faculdade.- Vocês me deixar ir, simples.
- Cale a boca Juninho. - Edmilson fumegava de raiva.
- Eu já respondi o que precisava não foi? Se seu pai me ver aqui.... você também vai sair fudido cara!
Edmilson parou, com seu rosto ao oposto de Karlene e Juninho, não aguentou segurar o pequeno sorriso, os cantos de sua boca se levantando levemente.
- Eu...eu tenho uma ideia... - Ele se vira para Karlene, ela já entendendo quase instantaneamente. - Karlene, sobe.
- Não...você não pode fazer isso... você não pode fazer isso com o Seu Zé! - As últimas palavras da moça fizeram Juninho finalmente entender o que vinha a seguir, seus olhos abrindo em surpresa.
Engolindo seco, Juninho respirava e tentava se manter inteiro e calmo, sabendo que, se não estivesse preso pelas cordas em volta de si, já estaria com as mãos no rosto de Edmilson. Manchar o tapete abaixo com seu sangue, querendo quebrar seu nariz o suficiente para que seu rosto não trajasse mais da simetria quase perfeita.
Todavia, mesmo que agora a violência natural não era mais animalista e podia ser justificada, não podia fazer aquilo com o menino de Jorge.
- Falando no diabo. - A porta da frente de madeira bruta e escura fazia um barulho conhecido.
Karlene subiu as pressas, quase perdendo um de seus chinelos nas escadas de madeira, Juninho por outro lado, nem tentou se mover, não havia para onde correr, de qualquer forma. A grande porta da frente, decorada com uma bela janelinha redonda e emoldurada com um toque delicado, abriu.
- Ó filho, eu ceguei...
Da entrada ainda não dava para ver o centro da sala, então o homem ainda calmo tirava os sapatos caros para colocar na pequena sapateira preta de metal. Entretanto, de qualquer forma, já era a chegada do fim.
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Aré
Mystery / ThrillerConto de mistério no interior de Mato Grosso do Sul. Onde a pequena cidade de Santo Aré, se revela abaixo de seu mato não capinado.