Doente e pura

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- Karlene, tem alguém alí fora? - A pergunta suspeita vindo da sala de jantar fez a menina olhar para a janela minimamente interessada.
- Não. - suspirou - Essa cidade já está mexendo com sua cabeça, e olha que você acabou de chegar.

Talvez estivesse. A realidade é que Edmilson sempre contrariou a voltar para aquele lugar. Apenas voltou para honrar a finada mãe, e quietar as vontades de seu pai. As paredes e o chão compunham um retrato falho, construído com riquezas que Edmilson não sabia a origem, mas tinha medo de perguntar.

- Dona Marta nos convidou para ir ver a Dorotéia. - disse a menina monotamente. - Hoje a noite.
Passou-se minutos, talvez horas, e os dois se permaneceram quase estáticos. Edmilson decidiu, antes de ir visitar sua vizinha, olhar as coisas de sua mãe.
Camila era uma mulher simples, nascida e crescida em Santo Aré. Seus pilares eram sua família, ou pelo menos era isso que achavam.

Em seu closet suas roupas eram leves, e eram acompanhadas de fotos da formosa mulher, seu marido e seus dois filhos.
Tudo esperado por Edmilson, as fotos de família até fizeram o homem emocional. Secando as lágrimas que nunca saíram de seus olhos, desceu as escadas de madeiras, que ao peso de seus pés faziam um barulho irritante, e encontrou ao final dela Karlene.

Vestindo uma das únicas calças que havia trago, acompanhada de uma fina blusa roxa escura que cobria até seus pulsos. Mesmo sabendo que Karlene havia estudado a arte da moda, quando acompanhada a sua beleza, fazia Edmilson se sentir um pouco mal vestido.
- Está um pouco frio. - Engoliu seco - Vamos?

Os dois saíram pelas ruas escuras e secas. A falta de luz, junto do constante sentimento que estava sendo observado, deixava Edmilson um tanto ansioso.
Tentava esconder é claro, olhava para os lados discretamente tentando esconder sua preocupação.
Por um momento agradeceu pela cidade ser tão pequena, pois em alguns passos estavam em seu destino.

Pararam na frente da humilde casa da família. E se olharam.
- Você chama eles, ela quer ver você. - disse Karlene.

Eles entraram na casa envergonhados, Karlene quase se escondendo atrás de Edmilson. Sentou-se devagar no sofá, olhar nos olhos de Dona Marta e Seu Zé havia se tornado difícil.

- Seu irmão tem que voltar! A condição de Dorinha tem ficado cada vez pior. - o desespero de Dona Marta era perceptível. - Estou com medo...muito medo.

- Medo dela acabar como Juninho.
O marido complementava as falas de sua mulher, as partes vitais, que ela não conseguia dizer por conta de suas lágrimas. Segundo ela mesma, Dona Marta frequentemente se perguntava que pecado mortal havia cometido em sua vida passada para que seus filhos merecessem tal destino.

- Vão conversar com ela, ela precisa falar com com alguém da idade dela. - Disse a mulher se levantando - Eu vou cozinhar algo para vocês.
Edmilson se levantou primeiro, já Karlene precisou de alguns empurrãozinhos de seu amigo para finalmente tomar coragem, e assim foram os dois ao quarto de Dorotéia.

As paredes com um padrão esbranquiçado, os panos finos e claros, e as cortinas leves que dançavam sobre a janela. O quarto representava muito bem a moça singela.
Sua cama de madeira escura era fofa ao toque, e tinha sobre si um lençol florido de tons pastéis pintados a mão. Seus travesseiros de ceda a permitiam manter sua aparência comportada pelo dia e pela noite.

O perfume era de flores. Rosas, lírios e margaridas pareciam invadir de sua janela e inundar seu quarto em seu aroma.
Na roupa de cama pastel repousava Dorotéia. Como uma boneca, sua pele bronzeada era lisa e seu cabelo reluzente. Suas vestes simples e chiques a faziam parecer uma menina da cidade do Rio, no século IX.

Usava um vestido longo e branco, com uma cintura alta levemente marcada por bordados. A saia de apenas duas camadas, se destacava por sua fluidez e leveza. Afinal a veste era um pijama.
Era uma pena que as únicas roupas que Dorotéia vinha usando eram pijamas, confinada em sua própria casa, e principalmente em seu próprio quarto, a tanto tempo que nem se esforçava em colocar algo mais social.

Sentada em sua cama e escorada em alguns travesseiros rosa, Dorotéia lia um livro. Qual livro? Honestamente. Ela não saberia dizer. Mas imediatamente o guardou quando viu seu suposto predestinado. Ela e Edmilson tinham história, ou pelo menos Dorotéia achavam que tinham, mas talvez era coisa de sua cabeça.

Sentaram os dois, Edmilson e Karlene, em uma poltrona longa que ficava na parede oposta do quarto. O ar de repente se tornou tenso, mas não da forma que a moça bonita queria.
- Como você está? - A conversa não durou por muito tempo, mas já foi o suficiente para a tensão de Karlene se tornar perceptível. Ela olhava para todos os outros objetos que não fossem a Dorotéia.
Era chato a olhar flertando com Edmilson, além de sentir também um constrangimento não usual. Ao presenciar a garota usando de sua falsa inocência para o puxa-lo em seus braços. Ele tentava a todo momento fugir de suas iniciativas, mas estava se tornando cada vez mais difícil.

- Edmilson, vamos ver os fogos de artifício da paróquia! - Ele olhou em questionamento para Karlene, que não vocalizou nenhuma resposta - Vai ser no final dessa semana! Por favor...? - Como um homem poderia ignorar aquele olhar meigo, similar a de um anjo, que contaminava seu rosto?
-Tudo bem...eu lhe acompanho. - Sem parar de segurar suas mãos, Dorotéia deu um grande e puro sorriso.
Edmilson não conseguia impedir-se de sentir um pouco de dó de sua situação. Por conta da promessa, a qual fez a Juninho a anos e ainda considerava valida, de proteger sua irmã, ele sentia uma certa obrigação a seguir as inclinações de Dorotéia.
- Espero que eu posso andar nesse dia.

Depois dos três ficarem jogando conversa fora por um tempo, foi a hora de se despedir.

Os dois se levantaram e seguiram para a porta, primeiro saiu Edmilson, e depois Karlene. Mas antes que pudesse passar pelo alisar da porta para forma, sentiu um mão envolta do seu pulso.
- Karlene - Dorotéia havia percebido seu desconforto, é claro, ela percebia tudo. A filha mais nova de Seu Zé e Dona Marta passava seus dias lendo romances e contos, tratava as pessoas como personagem em suas novelas românticas.
- Oi... - Dorotéia a olhou com aqueles olhos de abandono, realmente irônico. Karlene pensou.
- Aconteceu algo com você? - Esse momento subiu sobre Karlene uma certa onda de ódio, fechando os punhos ela apenas se soltou do segurar da outra e quase fugiu pela porta.

Não iria cair em sua ladainha de novo, ela sabe muito bem o que fez, não é idiota, pelo menos não a esse ponto, imaginava.
Encontrou então Edmilson do lado de fora, olhando para o pomar de seu Zé, coberto de flores e frutos, realmente dava uma certa ambientação ao lugar.
- Lembra de quando brincávamos aqui? - Ele disse sorrindo ao relembrar memórias do passado.
Memórias que Karlene não queria desenterrar.
- Sim, vamos?

Saíram de novo pela noite, onde os únicos sons eram das cigarras e de seus passos. Ao chegarem cada vez mais perto de sua mansão, Edmilson sentia seu estômago remoer, percebendo uma má intuição que lhe infectava.
Ao finalmente chegarem perto do portão pesado de madeira, que levava a garagem por trás da cada, o homem percebeu uma certa peculiaridade na corrente do cadeado.

Não estava no mesmo lugar de antes.
Estranhou isso, mas preferiu ignorar.

Entretanto, a casa estava assombrada por fenômenos como aqueles, e uma deles, naquele momento; era uma figura na janela do quarto de seus pais. Diante daquela visão, Edmilson se desesperou, o meliante que estava mexendo com sua casa desde que chegou estava agora dentro de seu lar.
Suou frio, não pensou na possibilidade de realmente encontrasse o tal, e quais seriam suas ações caso isso viesse a ocorrer, muito pelo contrário, na verdade, foi consumido por sua curiosidade e não se aguentou.

Correu pelo quintal e quase derrubou a porta da frente, desesperado pelos corredores e subiu as escadas três degraus por vez.
Quando finalmente chegou ao quarto de seus pais, abriu a porta violentamente e lá se surpreendeu.

Não tinha ninguém.
Olhou por todos os lugares, nos quartos, nos armários, de baixo das camas e pelas janelas. Todavia, assim como outras vezes, não achou nada, apenas os papéis da cômoda de sua mãe revirados.
Deve ser um jogo, e, se realmente era, Edmilson estava perdendo.

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