・:*:・゚VII. SONHOS LÚCIDOS・:*:・゚

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A chuva não cessou pelo restante da tarde e atrevidamente estendeu-se pela noite. Eu deveria abrir as minhas anotações e checar uma última vez a minha aula do dia seguinte. Mas o clima e o barulho de chuva me convidavam a retomar a leitura de Morro dos Ventos Uivantes. Com a mudança eu havia parado pela metade.

A casa estava um tanto desorganizada, pois as minhas coisas da mudança haviam finalmente chegado. Eram caixas espalhadas por todos os cantos e eu as ignorei por dias até tomar coragem para organizá-las. Só abri uma delas, onde havia utensílios de cozinha muito essenciais.

Preparei um peixe grelhado com legumes e o comi calmamente enquanto via as notícias do dia com a tv ao fundo. Pouco dava atenção, na verdade. Assim que terminei de me alimentar, lavei a louça suja. Enchi a chaleira com água para fazer um chá.

— Não, não — Me detive — Acho que hoje está merecendo um vinho.

Então despejei a água da chaleira na pia e procurei pelo saca-rolhas na bagunça da caixa. Estava dentro de uma xícara.

Sentei-me na poltrona de frente para a janela do pequeno chalé, me sentindo muito confortável e aconchegada. Apenas uma luz fraca alaranjada do abajur iluminava a sala. As vezes um raio silencioso cortava o céu escuro e me fazia encolher confortavelmente dentro do meu cobertor de lã.

Estava me adaptando àquele lugar mais depressa do que eu imaginava.

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Satisfeita, eu abri o meu livro puxando o marca texto e iniciei a leitura após tragar um gole do meu vinho chileno.

Eu já havia lido Morro dos Ventos Uivantes inúmeras vezes, então não atrapalhou em nada os dias que fiquei atrasada. Sabia até de cor algumas falas de Heathcliff. Era como se o tivesse lido ainda ontem.

Outro raio cortou os céus, mas agora seguido de um trovão poderoso, quase como um rugido de leão. Por alguma razão aquilo me causou desconforto. Para piorar, a luz do abajur do chalé piscou algumas vezes, ameaçando se apagar de vez. Eu não queria de jeito algum ficar sozinha no escuro ali.

— Droga*, queda de energia agora?

Puxei o celular para me certificar de que havia bateria suficiente. E havia, me deixando aliviada. Não precisaria sair correndo a procura do meu carregador.

Ao tentar retomar a leitura, os meus olhos desviaram-se mais uma vez até a janela e não eram raios. Era uma massa preta que logo tomou a forma de um pássaro. Um pássaro de penas negras* feito carvão. Claro, era um corvo. Outro corvo. Inúmeros deles, como se fossem uma praga*. Em biologia, consideramos que há um desequilíbrio ambiental, quando faltam predadores suficientes para presas. Talvez fosse o caso dos corvos ali, se reproduzindo e alastrando porque não há um predador que possa fazer o controle e manter o equilíbrio do pequeno ecossistema.

O animal ficou me olhando por um longo tempo, parecia até estar empalhado. Eu permanecia imóvel, com o livro aberto sobre o colo, encarando a ave de volta, na mesma medida. Era como se de alguma forma aquele olhar me fosse familiar. E não era pela aparência, pois corvos em sua maioria, são todos iguais. Era exatamente a maneira com que me fitava e a sensação que era capaz de causar em mim.

A luz piscou mais duas ou três vezes e na terceira, quando olhei para a janela, o corvo havia ido embora, para o meu alívio.

De maneira instintiva tive o ímpeto de me erguer da poltrona e caminhar até a janela. As vidraças estavam salpicadas de água da chuva que se juntavam e escorriam juntas até a madeira do batente. Puxei a cortina de véu para espiar o lado de fora. A rua estava deserta, nem mesmo um cachorro vira-lata havia vagando.

Apenas a chuva caindo do lado de fora, agora mais amena.

A luz não mais piscou e finalmente consegui relaxar para continuar com o livro. Avancei vários capítulos sem de dar conta do horário. Fiquei algo mais que duas horas lendo sem parar, já passavam das dez horas.

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A garrafa de vinho estava pela metade e eu ri comigo mesma pela minha irresponsabilidade de tomar meia garrafa sozinha em plena terça-feira. Livro e vinho não são uma boa combinação certa para mim. Gosto dos dois na mesma intensidade e quando juntos, eu me perco.

Fechei o livro, recolhi a garrafa e a taça e depois fui para o quarto.

— Merda*, acabou a pasta de dente!

Escovei os dentes sem pasta alguma antes de deitar.

A chuva voltou com um pouco mais de força e os raios piscando no céu não me impressionavam mais. Na verdade, eu gostava de barulho de chuva para poder pegar no sono.

Assim que me deitei, o corpo pesou, coisa que acontecia quando eu estava muito cansada. Cada célula do meu corpo parecia vibrar, e eu acreditava que estava prestes a pegar no sono, com o nível de relaxamento que me encontrava.

Mas alguns neurônios meus acordaram, me dizendo que aquilo não era um sono qualquer. Talvez fosse o fenômeno que vez e outra surgia nesses momentos de descanso e que eu os vivia desde a adolescência. Alguns amigos diziam que era projeção astral, mas eu sempre assimilei a ideia de que não passavam de sonhos lúcidos.

Enquanto o meu corpo parecia pesado, ele também se tornava leve, como se houvesse duas de mim. Era um paradoxo.

O que me intrigava era a lucidez dos sonhos e quase sempre aconteciam da mesma forma, como naquele instante.

Uma parte de mim (ou outra parte de mim) desprendia-se do meu eu físico e flutuava logo acima do meu corpo deitado na cama. Eu era capaz de sentir as duas formas, da mesma maneira (a forma física e a projetada). Eu flutuava até chegar ao teto.

Quando abri os olhos, o meu corpo estava pairando sobre o teto do chalé, do lado de fora, envolta na escuridão. Não havia mais chuva, mas o céu estava encoberto de nuvens. Não dava para ver a lua ou as estrelas.

Um fio de prata pendia do meu umbigo e descia pelo telhado do chalé. Era o mesmo padrão, sempre. Esse fio parecia ligar a minha forma não física a forma física. Mas não importava a distância que eu percorresse, o fio nunca se arrebentava. Como se estivesse ali para me lembrar de que em algum momento eu deveria voltar.

Um sonho lúcido, completamente lúcido. Eu voava sobre Sundale, pairando sobre os telhados que já estavam com a maioria das luzes apagadas. Havia muita árvore na cidade, o terreno quase todo era plano, exceto na parte que subia para a única colina que havia nas proximidades. Uma colina tomada por mata.

Os meus olhos foram atraídos por uma fumaça que subia das proximidades dessa floresta na colina, como se alguém estivesse fazendo uma fogueira. Então direcionei o meu corpo no sentido de onde a luz e a fumaça vinham, sempre atenta ao fio de prata que me ligava ao meu corpo físico, temendo me perder.

Havia chegado a uma propriedade grande, com uma gigantesca casa de prováveis inúmeros cômodos. Se tratava realmente de uma fogueira, que se consumia em labaredas altas, lambendo os céus. Nesses sonhos eu geralmente não sentia cheiro de nada, apesar de serem muito lúcidos. Mas era capaz de imaginar o cheiro de madeira queimada daquela fogueira.

Ainda com curiosidade, e não sei explicar por que, continuei pairando sobre a imensa casa. Mas um grito agudo, de uma menina, fez os meus tímpanos estalarem de dor e o meu corpo não físico, antes leve feito uma pena, ficou pesado e eu despenquei de onde estava, atravessando o teto até o interior do imóvel.

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