XXXIV. TUDO CONVERGE PARA ASALOOM

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Quando já não ouvia mais os passos do policial Harry, eu expeli todo o ar no pulmão que havia aprisionado. Como se ao respirar fosse acabar escapando da minha boca que Asaloom me salvou das garras de Carlo naquela noite.

Ao sair da sala, eu procurei por Jéssica. Ela estava no banco perto do jardim encolhida e já não chorava, mas estava tão abatida quanto antes.

— Eu sinto muito. — Foi o que eu disse ao me sentar do lado dela.

— Ah, Mahana, os meninos foram reconhecer o corpo. Disseram que nunca haviam visto algo parecido antes. Davi está horrorizado.

— Como assim?

— Davi contou que o corpo estava seco, a pele enrugada, como se tivesse sido mumificado. Até o médico legista achou estranho, pois pelos cálculos dele, Carlo foi morto* naquela noite. Disse que depois de tantos dias seria esperado que o processo de decomposição tivesse começado. Mas estava praticamente intacto.

— Como se realmente estivesse mumificado?

— Sim.

Asaloom voltava a minha cabeça. Ele estalou os dedos e Carlo caiu se contorcendo de dor naquela noite. Isso, claro, não explicava de forma alguma os achados do médico legista, porém foi o pensamento que me ocorreu. Asaloom era um dos principais suspeitos. Acho que por Violet eu não queria acreditar que ele pudesse ter feito algo contra Carlo, tê-lo assassinado*.

— Jess, acho melhor você ir para casa. Eu falo com a diretora Cole e tento cuidar da sua turma.

— Não será preciso. A diretora já dispensou os meus alunos e me liberou para casa. Eu fiquei apenas para dar* depoimento ao policial Harry.

— Então vá descansar, sim? Mais tarde eu te ligo para ver como está.

Jesse assentiu. Eu a levei até o carro, perguntando se estava bem para dirigir.

— Sim, fica tranquila. Chegando em casa te mando uma mensagem. Preciso espairecer.

— Vou aguardar. Beijos.

Enquanto voltava para a sala de professores, o meu celular vibrou. O número de Steven apareceu na tela.

— Alô?

— E aí, Mahana? Como está?

Eu suspirei.

— Bem... eu acho. Um conhecido faleceu e estamos todos meio que em choque ainda. Depois te conto mais detalhes.

— Nossa, que coisa chata! Mas você está bem?

— Ah, estou. Um pouco apreensiva, apenas. E quanto a você? ? Tudo ok?

— Estou ótimo sim. Apesar da nossa noite ter acabado daquela maneira ontem, foi muito bom. Liguei porque estava preocupado com você. Deu tudo certo lá na casa do "cara"?

Tirando a pedra que ficou flutuando, acho que sim.

— Uhum, ele me trouxe para casa umas duas e pouco da manhã.

Eu nunca mencionaria o que vivenciei na cozinha de Asaloom a qualquer um que fosse. Até porque eu precisaria ter realmente certeza de que não foi um delírio (o que eu tinha quase cem por cento de certeza de que não fora).

— Vamos conseguir nos ver hoje?

Eu havia me esquecido completamente da promessa que fizera a Steven na noite anterior. Estava com zero vontade* de fazer algo naquela noite depois de saber que Carlo havia morrido. A minha cabeça não conseguiria se concentrar em outra coisa. Ou para ser mais sincera, acho que eu não estava mesmo empolgada. Minha relação* com Steven parecia ser algo apenas físico e eu gostava disso.

— Steven, vai ficar chateado se nós remarcarmos? Eu sei que prometi te encontrar, mas a morte* desse conhecido me deixou um pouco sem graça. Não acho que eu seja uma boa companhia hoje.

Steven ficou em silêncio, sinalizando que ele estava desapontado.

— Ah, ok. — ele tossiu de leve — No seu tempo, Mahana. Não quero ser um incômodo.

— Não, você não é. Fica tranquilo quanto a isso. E que bom que você me compreendeu.

— Uhum. Mais tarde nos falamos, então.

— Certo, Steven. Beijos.

Me senti um pouco escrota* por ter dado bolo em Steven, apesar de ter sido o certo a se fazer.

Violet não estava na aula, o que não estranhei, pois na visita da noite anterior, ela se  encontrava muito debilitada.

Quanto às minhas preces, não foram ouvidas: Jane estava lá, com as suas inúmeras canetas coloridas e sempre pronta irritantemente para querer ajudar. Ela respondia a todas as perguntas que eu fazia. Charles também não faltou: brincadeiras estranhas e piadas fora de hora. Por essas razões acho que se eu tivesse alguma fé, talvez as minhas preces fossem ouvidas e tanto Charles quanto Jane teriam faltado.

— Semana que vem temos testes. Estudem — Eu disse ao término da aula.

Mas fui tão ignorada quanto um mendigo pedindo dinheiro no centro da cidade.

A minha promessa de ir a pé para a escola ficou restrita ao primeiro dia. Em todos os outros acabei usando o meu carro. Mas neste dia, em especial, eu não me senti culpada pelo sedentarismo, pois uma nuvem carregada e cinzenta encobria o sol fraco. Tudo escurecia antes do tempo. Iria chover.

Assim que desci do chalé, uma rajada de vento ergueu as folhas secas do jardim, dançando com a brisa gelada. Eu corria pelo caminho de cascalhos até a porta do chalé, querendo fugir da ventania. Ou apenas me apressando para me sentir confortável dentro da minha casa e esquecer os problemas que aquela manhã pálida me trouxe.

A história da morte de Carlo não saia da minha cabeça. A pedra flutuante na cozinha de Asaloom também não. Os sonhos lúcidos, os dejavus. Tudo convergia para o grande maçom de Sundale: Asaloom Youssef.

Até tentei me distrair levando um tempo para organizar a parte debaixo do armário da cozinha. Estava uma tremenda bagunça com as louças empilhadas umas sobre as outras e eu nunca conseguia encontrar uma panela. Porém, volta e meia lá estava eu tentando ligar pontos, reconstituindo a última vez que vi Carlo em frente ao pub.

Não é possível, Asaloom nem mesmo tocou nele. Pensava.

Mas como se houvesse um comichão em mim, eu me ergui e fui até a minha bolsa. Precisava de papel e caneta para fazer algo antes que ficasse maluca: organizar os pensamentos.

Enumerei alguns tópicos:

1. Sonho lúcido (projeção astral): já tive vários sonhos desses, mas se intensificou quando cheguei a Sundale.

2. Mal-súbito de Carlo na noite pós pub: Ok, isso foi definitivamente esquisito* e inexplicável.

3. Dejavus: Na minha cabeça eu havia sonhado com a mansão que Youssef morava com a filha. Também inexplicável, apesar de eu acreditar que o meu cérebro estava me pregando uma boa peça.

4. Pedra flutuante na cozinha de Asaloom: Isso seria um ótimo assunto para relatos paranormais de programas sensacionalistas.

5. Malditos corvos: Asaloom os adorava. Eu resolveria o problema com muito veneno. Assim que as pragas* são tratadas.

Todos esses cinco tópicos tinham uma única coisa em comum: Asaloom Youssef. Tudo convergia para ele. Até amigo dos corvos ele parecia ser. E somando esses fatores eu começava acreditar que a resposta para ele me querer fora de Sundale estava ligada a um desses tópicos. Restava descobrir qual deles

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