Prólogo - O Lobo

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Janelas e ventanas se debatiam em seu limiar, lutando contra os ventos atrozes que ousavam invadir. Não restava uma única alma no salão daquela taverna senão aqueles dois homens. O velho taverneiro, porque aquele era o seu lar, e o forasteiro, porque tinha perguntas para fazer.

— Preciso que me conte mais sobre o tal desse cavaleiro que veio ao seu estabelecimento ontem.

O forasteiro de sobretudo, quem perguntava, tinha uma barba rala na face e uma expressão insossa. Eram algumas das coisas mais memoráveis de seu semblante, fora aquela rasa cicatriz no dorso de seu nariz. Sentava-se sozinho naquele banco de balcão, tomando um copo de água morna.

— Era uma mulher — respondeu o velho taverneiro, sua voz rouca e grisalha de idade. — Mas não do tipo que se casa e vira dona de casa numa chácara com três filhos. Aqueles seus olhos de mil jardas, afiados como quarto de minguante, pareciam já ter visto um inferno que minha imaginação jamais seria capaz de conceber.

— Uma mulher?

O forasteiro tinha uma espada larga de duas mãos que descansava inclinada, apoiada no balcão da taverna — um montante formidável. O punho da espada coberto por couro crispado, negro como azeviche, de uma lâmina longa demais para caber numa bainha.

Ele ergueu uma sobrancelha, intrigado, esperando pelo velho contar-lhe o resto da história:

— Os outros não queriam acreditar que o Cavaleiro de Monteprata era uma dama, mas eu juro para você que vi bem, com meu único bom olho, quando ela tirou o elmo.

— Não estou duvidando de você, velho.

O velho tapou os lábios com o punho e pigarrou.

— Pois bem, mas essa não era nem a parte mais espantadora disso tudo.

— E o que era?

— Uma espécie de monstro. Eu nunca, jamais tinha visto nada remotamente parecido com aquilo na minha vida. Uma mulher com orelhas e cauda de animal. Seus caninos eram afiados como as presas de um lobo.

— Um lobisomem?

— Não, nada disso — replicou o velho. — Fora essas três características, era uma humana normal. Cabelo preto, pele pálida e olhos azul-escuros. Ela tinha algumas poucas sardas no rosto, também.

— Essa memória em específico parece bem fresca na sua mente.

— Como você acha que esqueceria? Ela não era de falar muito, mas não era como se precisasse de palavras para deixar uma impressão.

— Você pelo menos chegou a falar com ela?

— Um pouco, mas ela não parecia muito interessada no que eu tinha para dizer ou perguntar. — O taverneiro coçou atrás da cabeça. — Passou a noite inteira com a cara fechada, assim como os velhos ranzinzas da praça.

— Sabe o nome dela?

— Não perguntei, cada palavra que eu dizia parecia deixá-la mais perto de arrancar a minha língua. Uma megera. Eu não tenho medo de muitas coisas, mas ela me dava calafrios.

O homem de sobretudo apenas havia tratado daquele assunto desde o momento em que sossegou no estofo do banco. O taverneiro suspirava, cansado de ouvir as perguntas insistentes daquele homem. Não que tivesse muita escolha, visto que ele era o único cliente daquela noite de nevasca.

A lareira crepitava e o silêncio de conversa póstuma se instalava. Ousando quebrar o gelo, o taverneiro indagou:

— Então, forasteiro... qual o seu nome?

— Kinley. — Curto e grosso. — Luci Kinley.

— E o que te traz a este fim de mundo? Não vemos muitos viajantes por aqui, você é o primeiro em anos.

Kinley voltou-se para o taverneiro com seu olhar póstumo, maculado por olheiras de noites lúcidas. Como se estivesse ponderando se deveria revelar seus motivos. Após um breve momento de silêncio, ele respondeu com a seca indiferença de sua voz:

— Estou procurando por ela.

O taverneiro arregalou os olhos, surpreso.

— A megera? Por que diabos você se meteria com uma mulher dessas?

O homem de sobretudo permaneceu impassível como um monólito, sua voz ainda grave e monótona.

— Tenho meus motivos. Motivos que não lhe dizem respeito. O que quero de você é apenas que me aponte a direção certa.

— Me parece mais é que você tem um desejo de morte.

O taverneiro despendeu um suspiro, hesitante.

— Mas se está falando sério em ir atrás dessa mulher, deveria procurá-la em Altaneve. Boatos dizem que ela pegou o itinerário do norte. É uma longa estrada de neve e cascalho.

Ao ouvir as breves palavras do velho, o forasteiro levantou-se do banco e empunhou sua espada pela ricasso. Lançou um siclo de prata sobre o balcão e virou-se de costas.

— Vai sair? — indagou o velho. — Nessa nevasca?

Ele não respondeu, sequer assentiu com a cabeça. Não olhava para trás, sequer vacilava em seus passos. O forasteiro apenas trilhava silente em direção ao limiar da porta. Um fragmento da brisa gélida da nevasca adentrou a taverna e os sinetes de latão tilintaram quando ele fechou a porta.

O vento uivava e o silêncio voltava.

Aquela foi a última vez que por ali viram aquele homem.

A Megera de MonteprataOnde histórias criam vida. Descubra agora