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Querida eu do futuro,
Estive adiando essa carta pelo simples motivo de não saber o que dizer, apesar de ter muito para contar. Acho que seria mais interessante escrever para a minha eu do passado, que sem dúvidas ficaria surpresa com todas as revelações que irei fazer, mas não posso fazer isso. Me contento em escrever para você apesar da ideia não me parece muito emocionante, porque você já saber sobre tudo que eu irei dizer.

A vó Maria morreu, e eu ainda não consigo descrever em palavras como me sinto sobre isso, hoje completa 5 meses da sua partida. Ontem eu chorei de saudades, antes eu chorava de inconformidade. Não quero dizer que já aceitei o fato de que ela não está mais aqui, de que nunca mais vou vê-la sentada na sua poltrona na varanda de sua casa enquanto tricota mais um casaco para um dos seus inúmeros novos bisnetos, não me conformei de que não fui visitá-la por puro orgulho e capricho ao passo de que tudo que ela queria de mim era poder estar presente na minha vida. Ela sentia minha falta e agora eu sinto a sua falta mais do que tudo, espero que no futuro ao reler essa carta já tenha me conformado com esse sentimento de culpa e amargura. Não sai do seu lado durante todo o velório, acho que para tentar compensar o tempo que não passei ao lado dela, mas não seria suficiente, nada nunca seria suficiente, pedi desculpas inúmeras vezes enquanto me debruçada sobre seu corpo frio, disse que a amava e que sentia muito por tudo, seria egoísmo desejar que nada daquilo estivesse acontecendo porque nós sabíamos o quanto estava sendo difícil para ela. A velório estava cheio de flores que como sempre desencadearam uma crise alérgica em mim, mas me obriguei a ficar como forma de punição inconsciente, acho que nunca vou deixar de sentir culpa e pesar. Ainda consigo imaginá-la dizendo o quanto sentia minha falta e me pedindo para ir visitá-la, isso acaba comigo de uma forma que nunca imaginei. Sempre soube que ela iria morrer, sempre tive ciência de que ela era uma pessoa difícil de se conviver mas eu não quis pensar nisso quando me afastei dela e de sua convivência. Nada no mundo te prepara para isso. Me pego pensando nela com mais frequência do que gostaria e sinto sua falta até mesmo inconscientemente. Me lembro de olhar uma última vez para o seu rosto enquanto fechavam o caixão, com a certeza mórbida de que aquela seria a última vez que eu a veria, para sempre, porque não acredito que iremos nos reencontrar em qualquer lugar depois da vida, e me desabei em um choro compulsivo que me fazia soluçar e convulsionar. Vir embora e encara a vida, que continuou mesmo depois de sentir que meu tempo tivesse parado, foi a parte mais difícil e incompreensível disso tudo. Pra mim o tempo parece não ter passado, não percebo os dia passando e me vejo surpresa ao perceber que hoje fazem cinco meses. Minha vida continuou e cheia de reviravoltas como sempre foi, me aconteceram coisas que queria compartilhar com ela, queria dizer que passei na faculdade, que estou com medo do novo e que queria que ela me ensinasse a tricotar também. Estou pensando em fazer uma tatuagem, pintar o cabelo e colocar um monte de piercings e tudo isso porque não consigo lidar com a realidade e busco incansavelmente uma forma de revirar minha vida de uma forma que passe a sentir qualquer coisa que não seja essa confusão de sentimentos sobre tudo isso. Para todo mundo eu pareço estar bem e de vez em quando eu até acredito nisso, não consigo pensar em como uma perda assim pode bagunçar tanto a minha vida e meu falso equilíbrio emocional. Acho que faz parte do luto tudo isso e agora me sinto apavorada com a ideia de perder mais alguém, é a primeira vez que consigo me expressar tão abertamente sobre isso e mesmo assim ainda me sinto estranha.

Não sei como concluir essa carta, na verdade não sei nem o que estou fazendo escrevendo de novo quando prometi a mim mesmo que não voltaria mais a fazer isso, não por capricho mas porque acreditava que não seria mais capaz. E por muito tempo realmente não fui capaz de escrever mais de duas palavras sobre a forma que eu estava me sentindo.

Eu achei que conseguia lidar bem com o luto, mas percebi que esse tempo todo só estive ignorando tudo isso.

Flores, cigarros e textos sem sentido no final do diaOnde histórias criam vida. Descubra agora