Rio Real - Agosto de 2002

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Rio Real, 2002

- Eu juro que não é nada do que vocês imaginam e...

O primeiro tapa é sempre o que arde mais.
É científico isso, eu acho... Não sei. Eu sei que perdi as contas quando senti o gosto metálico do sangue na minha boca, e quando meu ouvido zunia tanto que eu era incapaz de ouvir o som estalado da mão de meu pai contra a minha face.

Um, dois, três... quem estava contando?

Acho que as lágrimas faziam com que o local avermelhado de minha pele doesse mais, então eu segurei o choro. Segurei e escolhi morder o meu lábio inferior para não gritar – se eu gritasse seria pior. Eu sabia disso.

Depravada.
Imunda.
Praga.
Pecadora.

E eu queria explicar. Eu queria perguntar qual o meu crime por me apaixonar por alguém, por amar alguém, por viver um sentimento tão forte e intenso e verdadeiro e lindo como o que eu vivia?
Eu não conseguia entender. Meu pai amava a minha mãe, e eles podiam estar juntos.
Por qual motivo eu não poderia também?

Vergonha.
Lixo.
Aberração.

"Onde foi que eu errei?" ouvi minha mãe bradar, se questionando – aos prantos também – o ponto em que minha criação deu errado e eu me apaixonei por uma mulher. Por Deus, ela não estava nem me ouvindo, e eu estava apanhando por algo que nem sabia ser errado.

Não era errado. Amar alguém nunca seria um erro – e, se fosse, eu pagaria todos os dias por um pecado tão bom. Certamente, pecado seria deixar uma filha com hematomas pelo corpo, com feridas tão profundas que seriam capazes de fazer sangrar até a alma.

"Mãe, eu ainda sou a mesma. Sou a Sisa, a sua Sisa, lembra? Que gosta de montar a cavalo e tomar banho de rio e..."

Besteira de quem escreveu que as palmadas da mãe doem metade do que as palmadas que a vida dá na gente. Aquelas palmadas estavam doendo para caralho.

Quando ela puxou a blusa da escola com força e rasgou, deixando-me apenas com a saia de pregas até o joelho, eu soube que talvez seria o meu fim. Havia aprendido outro dia que, a depender da pancada que levássemos no peito, o coração poderia parar.

Tudo bem. Morrer de verdade talvez fosse aplacar a sensação de morrer e continuar vivendo. Meu coração já havia parado de bater, mas minha mãe continuava batendo. E batendo. E batendo. Mãos fechadas, punho em riste e o olhar mais cruel que já direcionaram a mim.

A última coisa que eu ouvi antes de desmaiar de vez foi o choro de uma criança. Uma menina loira, de franjas, assustada, assistia aterrorizada enquanto minha mãe despejava todo o seu ódio contra mim – e eu não sabia ainda, mas esse ódio tinha nome: Homofobia.

Meus olhos estavam quase fechando, mas distingui meu pai carregando a criança no colo e levando para fora de nossa casa.
Minha mãe deu o soco final que me fez desmaiar.

Quando acordei, ela estava sentada ao meu lado. Eu sabia que era noite, mas podia ver a luz que entrava pela fresta da porta – bem como o barulho de gritos do lado de fora. Distingui a voz de meu pai e de meu padrinho, um gritando com o outro.
Brigando por minha causa.

Quando Fairth percebeu que eu havia acordado, não alterou o tom de voz. Não pediu desculpas. Impassível, no tom mais sereno do mundo, apenas proferiu as palavras que mudariam a minha vida para sempre:

- Suas coisas já estão arrumadas. Eu quero você fora daqui.

E foi assim que eu perdi o meu lar por ter me apaixonado por ela. Me apaixonado por Elena, a dona da Fazenda Quatro Folhas.

"Uma criança não deixa de amar os pais porque foi castigada física ou emocionalmente [...], ela deixa de amar a si mesma."

FAZENDA OLIMPO [Simone | Soraya]Onde histórias criam vida. Descubra agora