POV Perséfone
Os três primeiros dias do meu ciclo foram os mais doloridos, quase não saí do meu quarto. Hekate me ajudou muito com seus chás e óleos essenciais. Conforme o sangramento diminuía e minhas forças retornavam, notei mudanças em meus dons. Minhas criações passaram a ser tão intensas que não podia controlá-las. Pensamentos intrusivos faziam surgir flores nas colunas da cama e no chão do quarto. Alguém com olhar atento poderia me interpretar facilmente.
Ao pensar em momentos alegres com Hekate, por exemplo, as astromélias começavam a brotar. Se uma sensação de saudade de casa e de minha mãe surgia em meu peito, eram cravos que despontavam. E quando me lembrava do momento com Hades nos campos Elíseos, rosas vermelhas e orquídeas de cores intensas se espalhavam pelo quarto. Eu implorava para que conseguisse controlar essas manifestações logo, ou certamente essas flores reveladoras denunciaram meus pensamentos.
Quando eu já estava me sentindo bem mais disposta, resolvi sair para dar uma volta. Desta vez estava sozinha pois Hekate havia saído para se encontrar com Hélio. Seria bom na realidade ficar só com meus pensamentos. Chegando aos Campos Elíseos, aproveitei para extravasar todo aquele poder acumulado em mim. Saí correndo pelos vales espalhando vida por todo o canto, não precisava mais me concentrar para criar uma infinidade de flores.
Era um dos melhores momentos da minha vida até então, eu podia cobrir uma vastidão com tulipas, lírios, peônias e rosas. Todas as cores que eu podia pensar. Todas as flores que podia pensar. As almas surpreendidas dançavam entre as flores e me cultuavam. O que me enchia ainda mais de vontade de criar. Concentrei todo o meu poder na terra e de uma vez só eu fiz todas as romãzeiras florirem e em seguida brotarem os belos frutos novamente.
Estava analisando contente meu trabalho quando a voz de Hades se fez presente.
- Como conseguiu fazer isso? - ele interrompeu minha contemplação
Tentei me recompor rapidamente e o reverenciei desajeitada
- Meu rei - tentei pensar em como responder, mas era constrangedor relevar a razão para um homem - eu não sei como, apenas senti meu poder aumentar
Hades caminhou por minha volta, observando as flores e os frutos que fiz crescer. Foi a minha sorte, pois as insistentes flores vermelhas brotavam ao meu redor enquanto eu o admirava.
- Entendo - ele ergueu-se e colheu uma bela romã, e a dividiu em dois - é um belíssimo trabalho, sinto que estou em dívida com você
- Não sinta, eu só estou atendendo a minha natureza
- Tome - ele ofereceu um dos pedaços da romã para mim - merece provar do seu trabalho
- Achei que eu não pudesse comer algo do submundo - o encarei
- Você as criou, e apenas algumas sementes não irão fazer mal - eu assenti, estava realmente curiosa para experimentar
Seis sementes, foi apenas isto que coloquei na boca e senti a pequena explosão doce e cítrica em minha língua. Era deliciosa.
- Vê? Não fez mal algum - ele afirmou e eu assenti
Porém, assim que as engoli, senti algo em meu corpo. Uma sensação estranha fez minhas pernas falharem. Me ajoelhei no chão sentindo um enjoo repentino. Meus cabelos que cobriam meu rosto, transformaram-se de acobreado para castanho escuro e a cor bronzeada de minha pele empalideceu.
- Você me enganou - minha voz saiu carregada de dor
- Acalme-se Perséfone - ele se aproximou colocando a mão em meus ombros
- Me solte - bati nas mãos dele para que se afastasse - você me enganou - gritei e bati os punhos no chão com todo força
Centenas de papoulas vermelhas apareceram neste momento à minha volta. Símbolo de amor falso. As lágrimas escorriam enquanto corria para meu quarto deixando aquele rastro de papoulas para trás. Não sei quanto tempo chorei em minha cama. Hades havia partido meu coração. Como pude ser tão facilmente iludida?
Era simples, eu havia me apaixonado. Por Hades como um todo, rei e reinado. Enquanto explorava apenas por curiosidade os campos e rios eu o conheci profundamente, mesmo sem querer. Pude ver sua sombra e sua luz. E nos campos Elíseos eu fui conquistada, aquela terra implorava pelo meu calor e mesmo temerosa me deixou florir. Eu acreditei que aquele era como o coração dele, cheio de esperança em uma nova vida, acolhendo as almas dos justos e trazendo paz mesmo após a morte.
Mas hoje, Hades deixara claro que não era diferente de Zeus, Poseidon ou dos outros deuses. Minha mãe tanto me alertou, para me afastar de todos eles, me avisou como os homens tomam o que querem das mulheres e depois as rejeitam ou as traem. Hades simplesmente me raptou e me prendeu aqui, e agora eu já imaginava qual seria seu próximo passo. Provavelmente viria até aqui, e tomaria de mim tudo que quisesse, até se enjoar e escolher uma outra mulher mais atraente. E eu me sentiria sozinha e usada. Eu não deixaria a história se repetir comigo, assim como aconteceu com minha mãe.
Enquanto chorava, Hekate entrou em meu quarto.
- Oh minha querida, o que aconteceu com você? - ela sentou-se na cama e afagou meus cabelos
- Ele me enganou Hekate - choraminguei
- Hades? - eu assenti - Oh não o que ele te fez?
- Me deu comida do submundo, disse a mim que nada aconteceria, porém olhe pra mim - apontei meus cabelos escurecidos - ele me prendeu aqui
- Hades, seu grande tolo! - a mulher que agora já aparentava ter mais de cinquenta anos esbravejou para cima
- Eu quero ir embora, Hekate, quero voltar para casa
- Oh minha querida, eu sinto muito, eu conheço Hades há muito tempo, sei que ele pode ser muito difícil de lidar. Achei que ele realmente gostasse de você e que seria diferente.
- Não quero isso pra mim, não quero que meu destino esteja a mercê dele ou de qualquer outro homem
- Você está certa - ela ponderou por um momento - realmente quer voltar para casa?
- Sim, já passou da hora - respondi
- Bem, eu tenho algo para lhe contar - ela me encarou e assenti para que prosseguisse - hoje quando fui visitar Hélio ele me contou algo sobre sua mãe - me exasperei no mesmo momento
- Como ela está?
- Desolada, não está cumprindo com os seus deveres de deusa, as plantações não crescem mais. Por isso os mortos tem aumentado, a humanidade está com fome
- Oh não, não, não - me desesperei - preciso fazer algo, amanhã irei falar com Hades, ele terá que me libertar!
- Faça isso, eu irei procurar por sua mãe e contarei que está aqui
- Obrigada Hekate, minha sorte é ter você como amiga!
- Não me agradeça meu bem, quero vê-la feliz - dizendo isto se levantou - posso demorar para encontrá-la se cuide enquanto eu estiver fora
- Eu irei.
Ela fechou a porta e eu estava sozinha novamente.
Imagem do capítulo - Antonio Ciseri (Maddalena_1864)
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Perséfone - da luz à escuridão
Romance"Meus olhos demoraram para acostumar com a falta de luz, mas quando finalmente pude enxergar cada brilho singelo e frio daquelas pedras, eu me transformei. Antes de você eu estava condenada a ser esquecida como uma ninfa das flores, mas você notou o...