Em uma casa velha feita de madeira, já bastante desgastada. Um senhor idoso, adormecia solitário. Sua respiração descompassada revelava que seus dias na terra haviam chegado ao fim.
Recostada na soleira da porta uma moça o observava, porém não era uma donzela comum, sua pele pálida e cabelos negros ondulados não eram diferentes de uma bela humana. Mas o par de asas negras e os pequenos chifres na fronte revelavam que não era uma criatura do mundo dos homens.
Seu rosto de traços finos e alongados e seus olhos negros brilhantes denunciavam uma intensa melancolia. Ela fitava o homem que dava seus suspiros finais, perdida em pensamentos.
- Macária! O que faz aqui?
Pela porta surgiu outra criatura, também uma moça, as duas eram incrivelmente semelhantes. De asas e chifres, com cabelos negros. A segunda tinha um ar mais rebelde e agitado, seu olhar reluzia em malícia.
- Só estou esperando - disse a primeira
- O que? Ele morrer?
- Sim, quero garantir que você não o perturbe em seus momentos finais
- Você é tão certinha, qual o problema em causar uns pesadelos? Humanos são tão medrosos
- Sabe que mamãe não gosta que os atormente
- E é por isso que temos que voltar, ela descobriu e está vindo
- Dessa vez ela irá mandar o papai a prender lá embaixo
- Não se eu fugir antes, vamos!
- Onde está Zagreu?
- Como saberia? Ele deve estar bêbado na cama de uma humana, aquele pervertido
- Não fale assim de nosso irmão Melinoe
- Não seria uma mentira - riu estridente - não me importo com ele, se mamãe acha-lo antes de mim gastará sua raiva nele
- Já está chegando ao fim - falou enquanto o senhor desfalecia no leito - pode ir, vou logo depois
- Ah, já entendi tudo, está esperando encontrá-lo
- Não sei do que está falando
- Não vou atrapalhar, estou voltando - e alçou vôo aos céus
Segundos após sua partida a respiração do senhor se esvaiu e em seguida entrou pela janela um outro ser alado. Dessa vez um homem de asas e cabelos prateados.
- Princesa, o que faz aqui? - questionou aturdido
- Estou o velando, aguardando sua chegada - falou serena
- Existe algo de especial nele? - questionou
- Sim, apesar de solitário, foi um homem muito sábio, dedicou sua vida a ensinar, queria que ele tivesse tido um fim mais honroso
- Está o protegendo de sua irmã? Soube que ultimamente ela tem assombrado vilas - em resposta a moça assentiu
- Vou levá-lo agora, o deixarei nas margens do Caronte, se o enterrarem com moedas o julgamento será rápido
- Se não o fizerem, poderá me avisar? Eu o libertarei da espera se for preciso
- Se assim desejar, princesa - o ser alado assentiu
Em seguida o homem se aproximou do senhor, tocou a sua fronte e a partir dela puxou para fora do corpo a alma translúcida. Confuso a alma do idoso olhou para as duas criaturas e para seu corpo que jazia na cama.
- Tânatos - pronunciou em sussurro olhando o ser prateado - eu morri?
- Sim, seu momento de descer ao submundo chegou, vou levá-lo até o Hades
- Nos acompanhe, prometo que sua jornada será em paz
- A alma assentiu, e os seres alados levantaram voo a carregando. Ao avistarem o rio Caronte, foram em sentido contrário à correnteza até adentrarem uma caverna. Deixaram a alma do senhor às margens, orientando o que viria a seguir e que ele deveria ser paciente até seu julgamento.
- Hades não se importa quando burla a regra das moedas? - questionou Tânatos enquanto caminhavam pelos campos asfodelos
- Na verdade, se importa, quando descobre que liberei uma alma da espera, discute comigo
- Seu pai sempre foi muito rígido com as regras, não se importa em desobedecê-lo?
- Na verdade não - riu docemente - tenho a vantagem de ser filha do rei, sei que ele nunca conseguiria me punir
- É vocês tem sorte, tem muito menos trabalho que o restante de nós
- Eu sei que diz isso por conta dos meus irmãos, eles não são exemplo de trabalhadores mesmo
- Perdão, não me leve a mal - interrompeu a caminhada segurando o ombro da moça
- Não me importo, não há nada para nós três aqui mesmo, tudo já funcionava em harmonia quando nascemos. Não há sentido em buscar funções falsas que não correspondem a nossa natureza como deuses
- Tem razão, mas acho que mesmo sendo a mais nova, é a que tem mais claro um propósito digno
- Agradeço seus elogios, Tânatos, sabe que aprecio sua companhia
- Não agradeça, você que me alegra com sua companhia
Os dois seguiram caminhando por um longo período, às vezes conversando trivialidades e às vezes aproveitando o silêncio.
- Princesa, sinto muito em ter que deixá-la, mas tenho trabalho a fazer
+ Espere, não vá ainda, tenho um pedido a lhe fazer
- Sim, diga e eu atenderei
- Na verdade - a deusa que até então estava tranquila, passou a dar sinais de nervosismo - não quero que atenda só porque sou princesa, quero que faça se o seu coração mandar
- E o que seria? - a encarou confuso enquanto ela segurou sua mão e aproximou seu rosto
- Eu desejo um beijo seu, mas apenas se você também desejar
Por um momento ele achou que tivesse entendido errado, mas a proximidade do belo rosto e do perfume adocicado da deusa o fizerem compreender.
- Não sei se devo
- Você sempre está falando de dever, esqueça meu pai por um momento, responda sincero se quer ou não, se não quiser está tudo bem
- É claro que quero
Ele aproximou ainda mais o rosto, passou a mão pela cintura dela e a ouviu suspirar, roçou seus lábios nos dela e nesse momento, a voz de outro deus, Hipnos surgiu no vale.
- Tânatos! Aí está você! - os dois se desvencilharam rapidamente - estou atrapalhando alguma coisa? - questionou com tom debochado
- Não claro que não - afirmou Tânatos - o que você quer?
- Hades está o chamando no salão
Já estou indo - começou a esticar as asas, mas Macária o interrompeu- Amanhã, antes de sair para buscar as almas, quero que me leve com você
- Tem certeza?
- Sim, tenho, estarei o esperando
O deus alado assentiu e voou para fora dos campos dos esquecidos.
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Perséfone - da luz à escuridão
Romance"Meus olhos demoraram para acostumar com a falta de luz, mas quando finalmente pude enxergar cada brilho singelo e frio daquelas pedras, eu me transformei. Antes de você eu estava condenada a ser esquecida como uma ninfa das flores, mas você notou o...