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Eu me recordo daquele dia como se fosse ontem, inconsciente do que me aguardava. Eu colhia narcisos. Brancos e frescos espalhados pela relva. Ainda sinto a grama roçando em meus pés. A terra viva cheia de energia de Hélio. Eu adorava esses momentos. Enquanto colhia flores podia aproveitar o silêncio. Quando avistei o narciso mais belo do jardim, ajoelhei-me para colhê-lo. Estranhamente, suas frágeis raízes pareciam enfincadas no chão. Empreguei toda a força que possuía para puxá-lo. Constrangida, agradeci mentalmente que as ninfas brincavam, distraídas demais para me notar. Depois de considerável esforço, o narciso teimoso saiu em minha mão. Enquanto o encarava, vitoriosa, o chão se abriu de supetão.

Ainda pude escutar as ninfas gritando "Koré!" em desespero ao longe, mas era tarde. A terra me engolia, e a fenda pela qual caí se fechava, desaparecendo com a luz de hélio. A queda parecia não ter fim, e inutilmente tentei criar vinhas para me segurar, porém apenas me machuquei no processo. Já perdendo a consciência senti a queda desacelerar, e os braços de um homem na escuridão me seguraram. Não conseguia enxergá-lo bem, mas seu cheiro era tão característico, almiscarado. A pele de seu pescoço era muito pálida, e seus cabelos negros. Ele parecia ser forte e muito alto, certamente era um deus também.

- Você está bem? - ele questionou, e sua voz grave ecoou como se estivesse vindo das paredes tanto quanto de sua garganta. Em minha confusão mental levei alguns segundos para processar a pergunta

- Acho que sim - respondi, mas não era totalmente verdade, meu corpo todo doía e os arranhões causados por minha tentativa inútil de segurar a queda, escorriam o líquido dourado.

- Irei arranjar algum aposento, para que possa se recuperar - a voz novamente ecoou por todos os lados, e eu apenas assenti

Ele me conduziu até uma carruagem, era negra, feita de ébano e incrustada de turmalinas por toda sua extensão. Os cavalos eram igualmente negros com a crina lustrosa. O deus me aconchegou no estofado e eu pude observá-lo melhor. Era muito belo, de cabelos escuros e longos, nariz alongado, se assemelhava a Zeus, mas de forma mais sombria. Os olhos também eram escuros como duas ônix, com rajados dourados ao redor da pupila. Me dei conta de que o encarei por muito tempo e desviei o olhar, constrangida por minha falta de postura. Olhei à minha volta, poucas tochas iluminavam o caminho que se estendia pela escuridão. Meu coração palpitou por um momento

- Onde estou? - eu já sabia a resposta, porém foi inevitável questionar o que estava acontecendo

- No submundo, em meu reino - ele fez uma pausa enquanto segurava o cabresto dos seus cavalos - E eu sou Hades.

Eu engoli em seco. A essa altura as ninfas já devem ter contado à minha mãe o ocorrido. Ela deve estar desesperada e furiosa.

- Como eu vim parar aqui? - questionei

- Sinto muito por isso - ele me respondeu - Algumas fissuras estão se abrindo desde a guerra com os gigantes, e infelizmente tem causado esses infortúnios

Era mentira, notei desde o início que havia sido uma armadilha, e eu literalmente caí. Mas não sou tola, Hades é um dos grandes reis, segundo minha mãe o mais colérico entre eles. E não estou disposta a irritá-lo.

- Acho melhor retornar para casa, minha mãe deve estar preocupada - tentei persuadi-lo apesar de saber que seria uma causa perdida

- Eu sei que minha irmã Deméter é uma mãe muito cautelosa, se vê-la neste estado irá se desesperar - ele pausou por um segundo - não quer perder a pouca liberdade que lhe resta não?

Encarei-o atônita, eu nunca havia visto Hades, minha mãe contara histórias de como ele era sinistro e taciturno, porém não fazia ideia que ele era capaz de me ler como um livro aberto.

Perséfone - da luz à escuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora