Demônios na Tempestade (O Monarca)

Capítulo 26 - O peso do machado.

O numero de pessoas naquela procissão era absurdo, algumas faces de torpor sobre o manto manchado, sorrisos amarelos e unhas escuras, a cantiga era proferida pela boca de todos, um coral decrépito porém era tão alto, alto o suficiente para ofuscar o barulho da chuva.

Lembro da voz dela, delicada e angelical, lembro da forma como afagava meus cabelos seu calor era gentil, seu rosto era belo, pequenas joias âmbar em tons distintos em seus olhos expressivos, as memorias ainda estão frescas, tão presentes que eram quase palpáveis, hoje em dia momentos felizes pesam mais do que qualquer espada.

Casa da revelação, logo após a igreja começar a caça as crias impuras muitas crianças foram sacrificadas, junto a suas famílias, aqueles que não queriam perder suas vidas entregavam sua prole por livre e espontânea vontade, algumas mães matavam as próprias crianças minutos após o nascimento, é extremamente fácil estrangular uma criança se você tentar, a dificuldade se apresenta logo depois, é difícil viver com o peso da culpa, por isso era comum ver os corpos pendurados nas arvores, o meu eu daquela época só podia achar aquilo hipocrisia.

Não escolha o caminho mais fácil para fugir de sua culpa.

Para aqueles que queriam salvação, era mais fácil procurar abrigo nos cultos e a Casa da revelação era isso, um exemplo clássico, tolos que se prendiam ao ideal de uma salvação da qual eles não merecem, mas para Carmila era diferente, minha irmã mais velha acreditava na salvação que eles proclamavam. Nascida com heterocromia era questão de tempo ate ser entregue a igreja, e para uma jovem de dezesseis anos ser entregue aos soldados, mata-la não seria a primeira coisa que fariam com ela.

Eu sempre segui Carmila e não seria diferente no momento em que ela decidiu fugir de casa, eu me juntei a ela, não senti falta de meus pais ou remorso por ter fugido com ela, afinal pessoas que vendem seus próprios filhos para salvar a própria bunda não merecem ser chamados de pais para inicio de conversa.

- Daniel, esta bem? - Ela se preocupa comigo mesmo na situação em que se encontra.

- Sim irmã, sem problemas.

- Andamos já tem algumas horas. - Ela olhou para os lados. - Já devemos estar próximos ao templo.

- Irmã tem certeza disso? - Eu tinha medo do local, tinha medo das vozes de suplica, medo das figuras esguias cobertas em mantos encardidos, medo da grande catedral de tijolos sujos e cobertos em lodo negro.

- Fique tranquilo Daniel. - Ela afagou meus cabelos, se fechar os olhos ainda consigo sentir o calor de seus dedos. - Assim que chegarmos teremos uma nova vida, tudo será diferente e finalmente poderemos ser felizes, longe desse mundo esquecido pela deusa.

O som da marcha era incessante e alto, a frente era possível ver a ponta das lanças, o aço dobrado apontado para o céu como se lhe perfurasse o ventre, a chuva era sangue, turvo e maligno, o meu eu daquela época não entendia o porque das cantigas e orações, o meu eu de hoje entende menos ainda.

O grande portão cessava o som das gotas sobre o piso, e iniciava o ecoar das vozes dos presentes. O palanque de pedra cinza era adornado com estandartes e velas, o som das cornetas indicava a presença do arcebispo e o fim da cantoria.

- Meus filhos. - A voz rouca e mansa, arrastava por entre meus ouvidos, como uma serpente prendia-se a minha garganta me causando desconforto. - Imagino que sua viagem foi árdua.

Ele parecia feliz ao nos ver, porém as figuras cobertas em mantos nas suas costas possuíam olhos assustadores.

- Mas não temam mais crianças. - Ele continuou. - Eu entendo vocês, eu compreendo todos vocês, essa chacina indiscriminada da igreja, joga nosso mundo no caos, pais matam e vendem suas crianças por puro medo e descriminação, para que?! - Seu grito ecoava. - Para um lugar ao lado dos justos? Sobre os pés de uma divindade tirana que mata e rouba nossa dignidade, eles exigem que nos curvemos e entreguemos nossos pescoços.