LXXXI
Era doloroso tentar capturar as lembranças que nadavam em sua mente, como peixes de formatos e cores diferentes. Alguns faltavam a barbatana, outros as nadadeiras, as falanges, os olhos, as brânquias. Sirius observava-as, paralisado e temeroso. Os dedos sem ousar tocar na água sagrada de tudo o que lhe restara: memórias de dias que nunca retornariam, manchadas e esfareladas pela morte de James e Lily, as chicotadas em Regulus, Scarlett o abandonando e o traindo, o incêndio.
Havia uma ou outra intocada pelos dementadores. Sirius, no entanto, não era corajoso o suficiente para acessá-las. Sabia que, se o fizesse, sentiria esperança. E esperança era a última coisa que poderia sentir naquele momento. Estava certo que uma hora ou outra ela desapareceria e nenhuma ilusão conseguiria desbotar a dura realidade: Sirius Black estava fadado a perder todos que ele amava.
Então, preferia observar os peixes nadando em círculos a uma distância segura, sem perturbá-los. Encolheu-se no pé da cama, o olhar vagueando pelo quarto da Casa dos Gritos: o consolo rachado da lareira, o piano desgastado, o tapete carcomido pelas traças. Ouviu os passos de Scarlett no andar de baixo, mas sequer se moveu.
Conhecia-a bem o suficiente para saber qual a pressão que seus pezinhos empurravam o chão, o ritmo de suas passadas, a forma com que ela encostava primeiro o calcanhar antes do pé inteiro. Era um pouco caótico como ela subia as escadas, sempre foi, desde que ela morou em Godric's Hollow.
Mal a olhou quando ela adentrou o quarto, o rosto tenso naquela expressão que ela sempre exibia quando estava aflita. Sirius ouvia a inquietação de Scarlett dali mesmo.
— Consegui a capa. — Ela deixou o tecido invisível flutuar na frente do rosto de Sirius, como se isso fosse lhe chamar atenção. — E roubei isto...
Sirius encarou o rolinho de canela que ela depositou em cima de seu joelho dobrado, comendo outro em silêncio. O açúcar de confeiteiro salpicando sua calça preta. Pegou-o, sentindo a maciez da massa em suas digitais, o cheiro de canela invadindo suas narinas e ressoando em seus ouvidos uma voz que ele conhecia bem, mas que não se recordava com nitidez.
Fechou os olhos.
James Potter cheirava a canela. Seu coração solapou com a constatação, a mão apertando o bolinho com toda a força que possuía, arruinando-o. Um dos peixes o encarou, de relance, e Sirius viu James com Harry no colo e rumorejando uma música. Seus cabelos estavam bagunçados, os óculos quase caindo do rosto. James ajustou-o com o mindinho, com um tique que ele possuía desde quando começou a usar óculos no terceiro ano em Hogwarts.
Agora, Sirius se lembrava disso. James virou o rosto ligeiramente para ele, um sorriso cansado despontando dos lábios finos.
— Tudo bem, Almofas? — Ele perguntou, até que seu rosto ondulou várias vezes, dissolvendo-se na visão do resto do bolinho na palma de sua mão. O aroma de canela deixando-o tonto.
— Sirius? Tudo bem? — Scarlett o encarava, preocupada. O olhar de Sirius foi atraído até o dela, o corpo inteiro se arrepiando com sua presença.
Ainda não estava acostumado com Scarlett ali, ao seu lado, depois de tantos anos separados. As memórias que ela protagonizava pulando de seu aquário de peixes, tentando tomar espaço da mente de Sirius, mas ele não permitiu. Ele e Scarlett sempre despertaram o pior um no outro. Transformavam-se em fogo e ventania, incêndio e furacão num estalar de dedos. E o medo o tomou, borbulhando por suas veias como o ar que entrava em seus pulmões. James sempre foi mais corajoso do que Sirius, o perfeito grifinório. Ele nunca teve medo de amar ou de ser amado, coisas que Sirius sempre temeu.
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Scarius | Sirius Black (Ato II)
Romance"Sabe como isso funciona, Sirius. Você me pede para ficar e eu vou embora." "Scarlett passou semanas inteiras se acusando de ser uma pessoa ruim. De ser uma assassina, uma traidora e uma covarde. Entretanto, naquele momento, percebeu que, se algo de...