Capítulo 1: Volver a empezar (começar de novo)

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Almas, hermanas mías, nunca mireis atrás.

Los pasados se cierran como los ataudes

(Almas, minhas irmãs, nunca olhem para trás

Os passados se fecham como os ataúdes)

— Delmira Agustini

O primeiro dia do resto de sua vida, era assim que Kelvin via aquele 24 de abril. Um dia de recomeços, de erguer a cabeça, deixar o passado atrás e finalmente brilhar no que sempre amou fazer.

Mas nas 8:55 daquele dia, o único brilho que havia em Kelvin era o do suor em sua frente, correndo depois de ter se perdido no caminho, quase a ponto de chegar atrasado no seu primeiro dia do trabalho novo.

Bom, para ser justo não era só o trabalho novo, era o trabalho novo, na cidade nova, do país novo, a mais de 8.000Km de casa.

Casa, será que o Brasil ainda era sua casa? Será que Espanha algum dia seria?

Foi em meio a questionamentos e devaneios, e um relógio marcando 8:58, que Kelvin chegou na frente do moderno e imponente edifício. Arrumou sua bolsa preta sobre os ombros, esticou sua camisa azul com anjinhos, puxou levemente o colar que tinha grudado no seu pescoço e foi até a portaria, tentando passar uma imagem de decisão e confiança, a pesar de saber-se encorvado e assustado.

No vigésimo andar, Ramiro aguardava impacientemente, mas com um grande sorriso no rosto, pelo rapaz que ele tinha que treinar. Ele não tinha ideia de como Kelvin era, infelizmente e muito a contragosto, por problemas pessoais, não tinha participado no processo de seleção de seu substituto.

Mas o fato de serem 9:02 e o rapaz não ter se apresentado ainda não era um bom sinal.

O preto precisava garantir que a pessoa que ficaria no seu lugar naquele cargo era capaz de dar conta do recado. Não que ele tivesse se apegado ao seu trabalho, mas amava as pessoas com as que trabalhava e considerava mais do que sua obrigação achar um substituto justo.

Kelvin podia ter o curriculum mais perfeito do mundo, ainda mais considerando que era um garoto de 27 anos, mas se não conseguia chegar em hora no primeiro dia, ele não tinha tanta certeza de que fosse o cara adequado.

O som do elevador o tirou de seus pensamentos, e seus olhos se dirigiram imediatamente ao rapaz loiro, baixinho, com o cabelo um pouco bagunçado e as bochechas vermelhas, que ainda recuperava a respiração e se encontrava encolhido sobre si mesmo, tímido.

Quando pôs seus olhos nos cor de mel, Ramiro soube que estava ferrado.

Não ele, se obrigou a pensar, ele não tem nada a ver com a criatura bela que tinha entrado por aquela porta, não era seu problema o brilho nos olhos, a boca vermelha e carnuda, os braços definidos ou a pele impecável com pequenas sardas espalhadas aqui e ali.

É claro que não, o cargo que ele deixaria estava ferrado, o garoto estava chegando tarde, sim, isso.

— Boa tarde, você deve ser..

— Kelvin, eu sou Kelvin, sinto muito o atraso, é fácil demais se perder nessa cidade, ainda estou me acostumando a ler tudo em espanhol e aparentemente o metrô tem mais estações das que eu achava possível, então acabei descendo errado e tive que voltar para o outro lado, mas tinha uma praça com alguns garotos que iam para o colégio, o que eu achei estranho porque pensei que entrariam mais cedo, mas — suspirou, se recompondo — desculpe o atraso... e o nervosismo — completou

— Não há problema, Kelvin, realmente é difícil se acostumar a uma cidade nova, chegou há pouco tempo? Yo soy Ramiro, por cierto (eu sou Ramiro, por certo) — respondeu com um sorriso simpático que fazia seus olhos jabuticaba quase desaparecerem.

Duas vidas, dois mundosOnde histórias criam vida. Descubra agora