Capítulo 9: la realidad (a realidade)

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“Somos lo que hacemos con lo que hicieron de nosotros”
(Somos o que fazemos com o que fizeram de nós)
-Jean-Paul Sartre

Naquela manhã de sexta, Kelvin decidiu vestir-se um pouco mais despojado, se bem ainda não tinha se sentido confortável o suficiente para voltar à roupa que gostava, muito menos a personalidade.

A conversa com Nando o tinha feito pensar, ele tinha reclamado de Ramiro, dizendo que não queria alguém que fugisse de tudo, imediatamente antes de perceber que ele estava fugindo de tudo.

A busca incessante pela estabilidade o tinha levado a nunca se estabilizar, a nunca aceitar, a nunca querer ficar.
E ele sabia o quanto isso custava, sabia que podia ir embora, mas não queria, dessa vez, não queria.

Não estranhou ao não achar Ramiro nem Ademir naquele escritório, ambos fugiam, como aparentemente faziam sempre. O Brasileiro com apenas uma mensagem geral avisando que faria home office, o Espanhol, sequer isso.

E na realidade Kelvin agradecia, precisava se concentrar em seus próprios pensamentos e em seus próprios sentimentos antes de tomar qualquer decisão.

A realidade às vezes é cruel, você deseja uma coisa por muito tempo, mas quando a realidade a outorga, ela trás um brinde, a percepção de que  que nunca a desejou.
Porque nossa mente brinca com nossos desejos, e a realidade brinca com a nossa mente. Kelvin pensava que desejava sua liberdade mais do que nada, pensava que seu passado tinha ficado atrás, pensava que relações de “família” já não o afetariam na realidade.

E o que podia acontecer, naquela Madri estranhamente chuvosa, que o fizesse mudar de ideia, não é mesmo?
Não era seu direito se meter nas relações familiares dos outros, mesmo que quisesse ajudar, mesmo que quisesse estar. Não ia fugir, mas não podia simplesmente pegar a responsabilidade para si.

Quem era ele para falar sobre família? O que ele um dia chamou de família, não estava lá, não era para si.
Estando a mais de 8.000 km e a um oceano inteiro de Carneirinho, nada do que aqueles que um dia chamou de “mãe e pai” fizessem poderia realmente mudar sua vida.

Fazia mais de 10 anos que ele não os chamava família, fazia mais de 10 anos que ele tinha tido a última conversa com seu pai, fazia mais de 10 anos da primeira vez que tentou levar sua mãe consigo, tirá-la dos braços daquele que tanto os machucou.
Mas ela decidiu ficar.

Faz 10 anos Kelvin se perguntava porque escolher o homem que a espancava no lugar do que a abraçava, o que a protegia, o que ela tinha colocado no mundo.

Faz 10 anos ela escolheu ele, e Kelvin escolheu a si mesmo. E pela primeira vez em 10 anos, ele se arrependeu de sua escolha.

Foi depois de uma jornada laboral “como qualquer outra”, com uma semi apatia “como qualquer outra”, quase como num dia estável demais, que a realidade invadiu.

A realidade era aquela, ela tinha partido.

Parabéns garoto, ela morreu, você nunca mais vai vê-la, ela morreu te odiando, assim como eu sempre odiei

Kelvin ligou para Odilon, desesperado, não poderia ser real, mas era.

Seu primo conhecia Kelvin muito bem, sabia que ele precisaria provas, precisaria ver para crer, esse era Kelvin, se não visse, acharia que era tudo armado por seu pai, acharia que Odilon já não estava de seu lado, acharia que todos faziam isso porque o odiavam.
Não porque Kelvin não acreditasse em Odilon, mas porque ele jamais aceitaria a verdade.
Então Odilon tirou uma foto, apenas uma, naquele enterro, e no momento certo a enviou.

Kelvin não podia respirar, ele precisava de ar, as janelas não abriam o suficiente, a porta também não, ele saiu do seu apartamento e logo do seu edifício, nada era suficiente.

Duas vidas, dois mundosOnde histórias criam vida. Descubra agora