Capítulo 12| Ian

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Entro em casa, ainda inconformado com o plano de Mathilde. Quando aceitei a sua ajuda para localizar e resgatar Ivy, não imaginei que ela tinha a ambição de matar Nikolai. O homem já tem uma idade avançada e não poderia dar muita luta, mas o seu exército com certeza as aniquilaria. Só de pensar nessa possibilidade, sinto o meu sangue congelar.

Uma imagem muito vívida dos cadáveres espalhados pelo salão, no dia da tragédia, atravessa a minha mente. Qualquer um de nós poderia ter sido mais uma vítima mortal naquele dia. Termos sobrevivido foi um milagre, quase uma obra do destino. Repentinamente, sinto uma necessidade absurda de proteger a filha de Christopher de qualquer perigo, mesmo se isso significar arriscar a minha própria vida.

Não consigo identificar o sentimento que me corrói por dentro. Nestes três anos evitei a todo o custo pensar naquele dia fatídico e nos meus amigos de infância. Pensei que assim conseguiria esquecer tudo o que ficou para trás e manter-me-ia afastado para sempre.

Agora sei que estava redondamente equivocado quando cogitei que seria possível apagar todas as lembranças. Em todos os lugares desta casa há uma boa recordação e a única coisa que eu consigo sentir é saudades. Saudades dos meus pais. Saudades da minha amizade com Gustavo. Saudades do sorriso da minha irmã. Saudades das provocações de Mathilde. Saudades das piadas de Christopher e da gentileza de Lilian.

Quando dei por mim, lágrimas corriam involuntariamente pelo meu rosto. Fico assustado, porque há muito tempo que eu simplesmente não esboço nenhuma reação. Nos últimos dois anos, todos os sentimentos ficaram presos dentro de mim. Eu era incapaz de os exteriorizar. Aparentemente, regressar originou um gatilho que fez com que tudo saísse de dentro de mim.

Eu permito-me chorar. Deixo que toda a dor se esvaía do meu corpo, derrotando-me. Não tenho noção de quanto tempo fiquei sentado no chão da sala, vendo as lágrimas cair no chão de mármore, mas quando as minhas lágrimas secam e o silêncio inunda o ambiente, ouço batidas na porta.

- Sou eu. - a voz inconfundível de Mathilde atravessa a porta e eu levanto-me.

Arrasto-me com alguma dificuldade até à entrada e olho através do olho mágico. Mathilde surge no meu campo de visão, com a cara limpa, o cabelo preso desajeitadamente e uma roupa casual. Era uma imagem incomum, visto que ela sempre se apresentava de forma elegante. Porém, não desgostei de ver o seu lado mais simples, mais humano.

Abri a porta, sem me preocupar com o meu rosto vermelho e olhos inchados. Assim que as suas íris escuras encontraram as minhas, vi a sua expressão mudar de ansiedade para preocupação.

- O que se passa? - dissemos ao mesmo tempo.

O silêncio voltou a reinar na sala de estar. Ambos fizemos uma pergunta, mas nenhum de nós parecia disposto a responder. Todo o cenário era atípico. O céu tornou-se cinzento de repente, em plenas cinco horas da tarde, com as nuvens a esconder o sol brilhante.

- Vinha só informar que vamos arrancar às seis horas da manhã em ponto, para chegar ao aeródromo ao pôr do sol. Aconselharia a deixar tudo o que vais levar já pronto, para depois conseguires descansar em condições. - Mathilde pronuncia-se, com um tom mais doce do que o comum.

- Certo. Agradeço pela informação. - digo gravemente, fungando para eliminar os últimos resquícios de choro.

- Também trouxe comida. - ela estende um recipiente na minha direção, um pouco hesitante.

Olho para o risotto com um aspeto delicioso e abro um pequeno sorriso. Mathilde e Ivy sempre faziam este mesmo prato quando os nossos pais nos deixavam sozinhos.

- Caseiro? - pergunto com humor.

- Como nos velhos tempos. - ela sorri.

- Entra. - afasto-me da porta, convidando-a.

Mathilde atravessa a sala naturalmente, como fez tantas vezes no passado. Tê-la por perto sempre foi algo comum e reconfortante, especialmente quando Ivy e Gustavo começaram a sair sozinhos durante a tarde.

Observo-a a puxar uma cadeira e sentar-se à mesa, colocando o risotto no centro. Apresso-me a ir à cozinha e levo dois pratos, talheres, guardanapos e copos. Ela analisa-me enquanto disponho tudo sobre a mesa e, quando me sento, quebra o silêncio.

- Desculpa por te deixar sozinho aqui. A princípio, pareceu-me a melhor solução, mas claramente é demasiado para ti. - indaga. - Deveríamos ter sido mais recetivos contigo.

- Eu compreendo. Não tens de pedir desculpa. - pontuo. - Fugimos sem deixar rastro e ficamos desaparecidos por três anos. É perfeitamente normal que agora haja um ambiente mais hostil entre nós.

- É estranho. Era tudo tão mais fácil antigamente. - reflete, enquanto descasca os camarões. - Andávamos por todo o lado, a explorar o território, sem nos preocuparmos com o dia seguinte. Depois, o meu pai ordenou que tu e o Gustavo começassem a participar na máfia. Lembro-me do quão animados vocês ficaram, mas eu e a Ivy sentimos a vossa ausência constante. Nunca mais saímos depois do jantar para observar o movimento da cidade. Nunca mais passamos os verões fora do território. Tudo se tornou muito mais complexo e aborrecido.

- Definitivamente. - concordo. - Eu e o Gustavo também sentimos falta de tudo isso, mas não podíamos reclamar. Estávamos destinados a assumir cargos importantes dentro da máfia.

- Eu sei. Nós percebemos isso eventualmente. - o sorriso dela agora demonstra tristeza. - Os últimos meses antes da catástrofe foram caóticos. O meu pai raramente passava a noite em casa, vocês nunca jantavam conosco, o teu pai saía muitas vezes em missões arriscadas. Eles sabiam que corriam riscos, Ian. É impossível o ataque ter sido algo tão espontâneo.

- É essa a tua teoria? - questiono.

- Não soubeste de nada minimamente fora do comum? - ela devolve a pergunta.

- Claro que não. - digo, ficando ofendido com a sua insinuação. - Não esconderia algo tão grave de vocês.

Mathilde suspira e baixa o olhar, arrastando os grãos de arroz de um lado para o outro com o garfo. Estendo a mão e toco o seu braço, fazendo-a olhar novamente para mim.

- Não vamos discutir sobre isso. - afirmo. - Não vale a pena.

- Tens razão. - ajeita a postura. - O que importa agora é ter a Ivy novamente entre nós, cuidar dela e voltar à nossa vida normal.

Assinto em concordância, mas um sentimento estranho revira-me o estômago. O que acontecerá depois de voltarmos para Itália? Eu e Ivy não podemos ficar aqui, temos a nossa nova vida em França e responsabilidades lá. Eu não posso abandonar o cargo que me foi concedido, não posso me ausentar por um longo período. Só estou aqui para resgatar a minha irmã. Esta convivência íntima está a deixar tudo mais confuso e mais profundo do que realmente deveria ser.

O pior de tudo é que eu não quero voltar. Não quero estar longe dos meus amigos e a minha irmã com certeza ficará desolada se a separar de Gustavo novamente. Se ela ficou doente quando fugimos, há três anos atrás, desta vez morreria de desgosto. O meu peito dói só de pensar na minha irmã em sofrimento. A vida já a castigou demasiado, ela merece ser feliz.

Acabámos a nossa refeição em silêncio. Mathilde mantinha a cabeça baixa, olhando para o prato, mas eu não conseguia desviar o meu olhar dela. Estivemos afastados durante três anos, mas parece que passou uma vida inteira por nós os dois. Nunca me odiei tanto por ser um covarde e fugir, deixando-a completamente sozinha a lidar com todas as consequências. Odeio saber que de certa forma agravei o seu luto, sobrecarregando-a com mais problemas do que uma jovem de dezoito anos deveria enfrentar.

Ainda assim, a mulher à minha frente demonstra uma resiliência jamais vista e não aparenta ter qualquer tipo de rancor pelo que aconteceu. O mínimo que posso fazer por Mathilde e Ivy é amenizar a sua dor voltando a reunir o que restou da nossa família. Contudo, não vejo uma maneira pacífica de tornar isso possível, o que me deixa angustiado.

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