As ruas de Aerdoria estavam calmas, o crepúsculo tingindo o céu com tons de laranja e rosa. Kael vagava pela cidade sem um destino certo, como se buscasse algo que ele não conseguia definir. As memórias, ou a falta delas, o atormentavam. Ele sabia que havia algo importante, alguém que tinha sido crucial em sua vida, mas a imagem era embaçada, e os nomes... os nomes escapavam dele como grãos de areia entre os dedos.
Ele sentia uma presença, uma sombra que o seguia onde quer que fosse. Sempre à margem de sua visão, sempre ao alcance, mas nunca visível. Havia uma sensação de familiaridade, mas também de perigo. No entanto, apesar do incômodo, Kael continuava sua rotina, convencido de que estava seguro em meio à civilização.
Enquanto Kael caminhava pelos becos escuros de Aerdoria, Uriel observava cada movimento com olhos atentos. Escondido nas sombras, ele acompanhava Kael como uma fera à espreita, mas a fúria que sempre estivera em seu coração era agora misturada com algo mais sombrio: medo.
Uriel sabia que não poderia matar Kael. Não conseguia, não por falta de força, mas porque o que ele sentia por aquele dragão renascido era um amor tão profundo que o enlaçava. A cada vez que sua mão se movia em direção à espada, seus dedos congelavam. O que mais o aterrorizava não era a incapacidade de matá-lo, mas a ideia de que, mesmo que Kael lembrasse de tudo, ele jamais o aceitaria de volta. O medo de ser rejeitado corroía sua mente, um demônio muito mais cruel do que qualquer batalha que ele pudesse travar.
Nas noites que se seguiram, Uriel continuou a perseguir Kael pelas ruas de Aerdoria. Ele assistia enquanto o dragão explorava a cidade, sempre à procura de respostas. Kael não sabia quem ele realmente era. E isso... isso enfurecia Uriel.
Cada vez que via Kael passar por uma esquina sem reconhecê-lo, sem nem mesmo sentir sua presença, a frustração crescia. Ele tinha tanto a dizer, tanto a gritar, mas estava preso entre a sua fúria e o seu amor. O conflito o rasgava por dentro. Kael não se lembrava nem de seu nome.
Uriel passou horas, dias, seguindo Kael. Assistiu quando o dragão sentou à beira do porto, os olhos fixos no mar, os pensamentos vagando para longe. O nome "Kael'thar" não parecia mais importar. O que importava agora era essa versão de Kael, uma versão nova, mas que Uriel mal podia suportar. A cada suspiro de Kael, Uriel sentia seu coração se apertar, sabendo que nunca mais poderia ter o dragão que conhecera. Mas ainda assim, ele não podia deixar Kael ir.
Naquele mesmo instante, escondido nas sombras de um beco, Uriel percebeu algo. Seu medo não era a morte, nem a vingança. Seu medo era perder Kael, para sempre. O novo Kael não o conhecia, não o lembrava, e a única coisa que Uriel podia fazer era observá-lo de longe, temendo que o dragão seguisse em frente sem ele.
Uma noite, enquanto Kael dormia em uma pequena taverna na cidade, Uriel decidiu que não podia mais adiar o inevitável. Ele deslizou pelas sombras, tão silencioso quanto a própria escuridão, e entrou no quarto de Kael. O dragão dormia profundamente, os lençóis cobrindo parte de seu corpo. Uriel se aproximou devagar, com um olhar triste em seus olhos.
Ele se ajoelhou ao lado da cama, olhando para o rosto de Kael. "Você não se lembra de mim," pensou, sentindo uma onda de dor atravessar seu peito. "Você não sabe quem eu sou. E eu... eu não sei mais quem você se tornou."
Uriel puxou uma pequena folha de pergaminho de dentro de seu casaco. Ele sabia que não podia continuar apenas observando Kael de longe, mas também não podia confrontá-lo diretamente. Com mãos trêmulas, ele escreveu uma mensagem curta e direta. Uma oferta de reencontro, uma esperança de que, ao menos por um momento, Kael sentisse a verdade.
*"O que você procura, Kael, está esperando por você perto do mar, em um palácio abandonado. Encontre-me, e talvez finalmente entenda o que você deixou para trás."*
Ele deixou a carta cuidadosamente ao lado da cama, se levantou e olhou uma última vez para Kael. "Eu não consigo te matar", ele sussurrou baixinho. "Porque eu ainda te amo... e isso me destrói."
E assim, Uriel desapareceu nas sombras, deixando Kael para enfrentar o destino que o aguardava no palácio à beira-mar.
Quando a manhã chegou, Kael acordou com uma sensação estranha. Seus sonhos haviam sido inquietos, fragmentos de uma vida que ele não conseguia compreender. Ao se levantar da cama, viu a carta ao lado do travesseiro. Ao lê-la, um calafrio percorreu sua espinha. O nome de Uriel, que ele não conseguia se lembrar, ainda pairava no fundo de sua mente como uma sombra.
Ele sabia que teria que seguir até o palácio, onde as respostas que tanto procurava poderiam finalmente ser reveladas. O que ele não sabia era que, ao fazê-lo, estaria se aproximando cada vez mais do demônio que o observava de longe, aquele que o amava e temia ser rejeitado por ele.
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Entre Marés e Sombras
Random**Sinopse:** Kael é um jovem dragão do mar, nascido de um ovo encontrado nas profundezas do oceano, nas ruínas de um templo antigo. Marcado pelo passado sombrio de sua vida anterior como Kael'thar, ele carrega um colar de yin-yang incompleto e uma t...