"Que a confiança desmedida não o deixe ingênuo, e que a confiança exagerada não te torne intolerável"
-Maquiavel
Eu sabia que tinha exagerado. O quanto será que aquele policial aguentaria antes de perder a paciência comigo? Ou melhor, até onde ele iria em busca de informações? A verdade é que eu nem me importava mais com comida, mal sentia o gosto dela desde que perdi o olfato. Comer tinha se tornado um ato mecânico, uma obrigação para manter o corpo em pé.
Talvez eu quisesse testar o limite dele. Ver se ele seria capaz de respeitar alguém como eu, mesmo que estivesse se aproveitando da minha condição para tirar informações. Mas, aparentemente, ele também queria o mesmo: alguém em quem confiar, alguém que o respeitasse. Eu poderia tê-lo imobilizado, fugido daquela situação desconfortável, mas eu também precisava dele. Então, tive que me passar pela garota frágil, divertida, como se estivesse nas mãos dele.
— Vai cooperar agora? — ele perguntou, já mais calmo, enquanto abotoava a camisa. Eu apenas assenti.
— Certo, senhorita Eun-Jin — ele começou. — Sei da sua condição, mas pode me explicar esses hematomas e fraturas?
— Difícil... nem todas vieram do mesmo lugar, tempo ou pessoa.
— Como assim? — Ele franziu a testa, confuso.
— Uma das costelas quebradas e o ombro deslocado foi quando pulei de um prédio fugindo de uns caras. A outra foi numa briga. O cara saiu pior. Esse roxo aqui foi uma barra de ferro, essa cicatriz... uma facada.
— O QUÊ?! — Ele me olhou incrédulo.
— Surpreso por estar certo? Não sou nenhum anjo.
— E por que está me contando isso?
— Você disse que queria a verdade, não disse? E, segundo... acho que pelo mesmo motivo que você. Mas te deixo perguntar o que quiser antes.
Ele me observava com desconfiança, tentando decifrar o que havia por trás das minhas palavras.
— Pela quantidade de fraturas que você tem, sabia que não levava uma vida comum de barista em um cyber café. A forma como te encontrei... Você estava fugindo de algo. Se esse "algo" for minimamente ligado ao grupo criminoso que estou investigando, os Fantasmas, vou agradecer por qualquer informação.
Eu não resisti. Uma risada escapou dos meus lábios.
— Fantasmas? — levantei da cama, ainda rindo. — Todo mundo está atrás deles. E você acha que eu, justamente eu, vou te ajudar?
Ele me encarou, confuso e irritado.
— O que é tão engraçado?
— Sério, não sei porque acha que sou útil. Mas, se serve de consolo, também estou atrás deles.
— Posso saber por quê?
— Os Fantasmas têm contato com outro grupo. O Enclave. Já ouviu falar?
— Não...
— Pois é, eles me sequestraram quando eu era criança. Fizeram experimentos no meu DNA, me deram essa "anomalia". Apagaram parte das minhas memórias. Fugi faz cinco anos, mas estou atrás deles para descobrir sobre o meu passado e, quem sabe, encontrar meus pais.
O silêncio tomou conta da sala. Ele parecia refletir sobre tudo o que eu tinha dito.
— Agora me sinto mal por como te tratei. Não parece tão ruim assim. No fim, você é a vítima.
— Continue achando isso — murmurei, com um sorriso cínico.
— O que disse?
— Nada! — ri, voltando ao tom despreocupado. — O importante é que agora somos aliados, certo? Temos um acordo?
Estendi a mão para ele. Ao invés de apertá-la, ele me puxou, me deixando cara a cara com ele, tão perto que eu podia sentir a respiração pesada dele. Meu coração, embora acostumado a pancadas, batia acelerado.
— Temos um acordo, mas... pare de brincar comigo daquela maneira. Quem sabe eu não entenda errado da próxima vez? — disse, com um sorriso malicioso, enquanto se levantava e se dirigia à porta.
— Ei, vai aonde?
— Pra casa. Ou... quer uma carona?
— Vai querer descobrir onde moro também? Não precisa. Mas me deixa pelo menos onde me encontrou. Vai poupar o gasto da volta pra casa.
— Você já não teve que pagar pela janta? — ele retrucou, divertido.
— Ainda não desenvolvi o poder do teletransporte, se é isso que está pensando.
Ele balançou a cabeça, rindo, e, sem muita resistência, me deixou na praça novamente.
Saí da praça e voltei para o Cyber Café. Na verdade, eu morava no prédio logo em frente, mas precisava falar com James. Esqueci de mencionar antes, mas ele é o dono do cyber café e mora no porão.
Entrei no café, me joguei no sofá e fiquei deitada, mexendo no celular enquanto esperava ele chegar. Estava ansiosa para compartilhar as novidades e sabia que a conversa que teríamos seria crucial.
— E aí, pirralha! Já chegou faz tempo? — Ele fala, jogando o casaco na minha cara.
— Faz mais ou menos meia hora...
— E como foi com o policial? Ele vai nos ajudar?
— Disse que sim... no caso, me ajudar. Lembre-se, eu não tenho ficha na polícia!
— É, realmente, mas parece que todo mundo está te procurando, né, princesa?
— Ele não precisa saber quem eu sou! Enfim, ele também está atrás dos Fantasmas. E me dá um pirulito também! — Falo, vendo ele tirar do bolso uns pirulitos em forma de coração.
— Olha só, parece até uma criança. Não pode ver um doce!
— Você sabe que eu quase não sinto o gosto das coisas. Tem que ser algo bem exagerado para eu sentir alguma coisa... — Faço uma cara triste e um bico.
— Vou pegar outro lá em cima para você. Esse está "batizado".
— "Batizado"? Não tá querendo dar doce para criança agora, né? — Faço uma expressão de surpresa.
— Que nada! Esse é para um grandalhão de um grupo X. Querem que eu entre no covil para conseguir umas informações e descobriram que o cara é viciado em doce...
— E eu vou precisar ajudar com isso?
— Não, esse não precisa. Mas tenho outro trabalhinho para você!
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No pain No emotion
Mystery / ThrillerEles me fizeram um experimento. Mexeram com meu DNA e agora eu não sinto dor! Parece uma vantagem? NÃO É! É uma maldição! Cada passo, cada movimento, é um risco constante de me destruir por dentro sem nem perceber! Eles mexeram comigo, mudaram tudo...