Parte Um: VI

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Acordo..., não, simplesmente levanto-me pois não consegui dormir; o som ríspido de um violino a ser exulcerado intensificou a cefaleia que tinha, levando-me a despejar grandes doses de água álgida no rosto. Observo o espelho que tinha à minha frente e vejo a imagem decrépita que evitei por tanto tempo. Assim que saio do quarto, vejo o número 293 a identificá-la, e logo abaixo uma placa contendo o nome "Sr. Aldane" marcado.

Numa caminhada ligeira, sigo o aroma apetitoso que se dispersava pelo corredor por onde naveguei até encontrar a sala que exalava tal aroma, tinha algumas mesas redondas forradas de branco espalhadas e adornadas com tulipas onde um homem de aparência jovial e robusta pousava alguns pães e cafés. Corro para fora do edifício e do outro lado vejo o senhor grisalho em pé, tinha um ar destroçado e fatigado enquanto me encarava à distância. Parecia tentar dizer algo, e depois de aguçar um pouco a visão percebi que soletrava articulando os lábios com nitidez: T-E-M-P-O.

Sabia, desta vez sabia exatamente o que ele queria dizer! Quando começo a me aproximar, o senhor me interrompe fazendo um gesto com uma mão enquanto tirava o chapéu da cabeça com a outra. Mais uma vez, eu sabia, sabia o que ia acontecer!

«NOME! Seu nome!» berrei antes que ele se virasse completamente, vejo um sorriso módico se formar em resposta. Não foi preciso mais, entendi o que significava. Caminho lentamente até o jardim à esquerda da entrada do edifício, era aqui o meu ofício, observo-o com ternura e logo continuo a caminhada, vejo Anna distraída encostada no balcão. Anna é alguém muito mais especial do que eu julgara, como pude me esquecer.

No caminho de volta para o meu quarto, me deparo com uma escadaria que levava ao andar de cima, onde havia um arranjo de flores Snowdrop num vaso de cor esmeralda num canto, e ao lado dele estava Kay, o gato. «Demorou muito tempo, não achas, Aldane? Tentaste prorrogar isto superfluamente», comentou ele em um tom sardônico.

«Sim, o tempo fósmeo que levei para perceber que gatos não falam é digno de escárnio, não achas, Kay? O quê? O gato comeu tua língua?» ripostei.

«Estão todos te esperando, Aldane. Sugiro que não atrases mais», dito isto, Kay também se virou, e com um breve aceno, desapareceu.

Ele estava certo, já passara da hora de partir. Deixei tantas coisas em branco, no fim não descobri nada. Foi inútil, tudo aquilo foi apenas procrastinação, uma tentativa frívola de impedir o inevitável. Este acossamento durou 18 anos, parecia que estava a ganhar terreno, em tempo e espaço, eu estava a me distanciar; agora me lastimo por não ter percebido o quanto estivera equivocado. Me perdi nestes devaneios por parecerem tão sutis, estas nuances...tão tênues.

Ao entrar no quarto, com as cobertas desfeitas e as cortinas fechadas, reparo no livro disposto sobre o criado-mudo, um livro aveludado vermelho-falu que trazia um título tão deteriorado que mal dava para ver: "Patris", sentei-me no extremo da cama e fixei meu olhar na parede alva e nua que tinha à minha frente. Era capaz de ver tudo, tudo o que ignorei por tanto tempo agora tremulava vigorosamente diante de mim. Assim perdurei até me enceguecer novamente.


Nuances da Vida de um DiaristaOnde histórias criam vida. Descubra agora