«Sr. Ludie! Eu trouxe um para o senhor hoje, veja!» dizia pequena Grace enquanto saía a correr do elevador em minha direção carregando uma porção de papéis desgrenhados. Agacho-me para alcançar sua altura e recebo alguns desenhos caóticos que corresponderiam às minhas caricaturas. «És realmente uma artista, Grace, isto está simplesmente esplêndido», afago os cabelos da menina que sorria radiantemente cheia de expectativas. Que inveja sinto da inocência juvenil, o tempo cruelmente transformará esta inocência em ignorância.
«Esta tua cara de chapa de metal te denuncia, meu caro», comentou meu colega com um sorriso maroto se aproximando com algumas pastas nas mãos depois que a pequena se retirou, tinha como sempre aquele ar despojado e barba malfeita, com fios loiros na cabeça arranjados lateralmente.
«Tens alguns desenhos para mim também, George?»
«Sim, sim, alguns desenhos escrupulosos feitos por um artista fenomenal, são os registos já analisados da tomografia da menina Grace. É para levá-los ao Karl, ele disse que estava te esperando. Depois me diga sobre o que conversaram, ele parecia bem-humorado; e não vais acreditar, mas eu juro que o vi sorrir.»
Não pude evitar uma comoção derivada das minhas imaginações sobre o que faria o tão conspícuo Karl ser descrito como bem-humorado. Karl era um amigo da família, colega universitário de meu falecido pai, formado em neurociência. Ofereceu-se prontamente quando descobriu meu súbito interesse em psicologia e me contratou assim que concluí os estudos. Entro em seu gabinete e vejo-o sentado atrás de sua secretária com o olhar fixado em um papel destacado.
«Bom dia, Karl. Trouxe a tomografia de Grace, George disse que já foi analisada. Provavelmente, para a semana não será preciso mais consul-»
«Não foi por isto que te chamei, Andrew. Tenho algo para te informar, sente-se primeiro. Quer café? Não? Certo. Preste atenção», arremessou o tal papel sobre a mesa, «esta é uma proposta do projeto de pesquisa que te falei, consegui a parceria e uma verba elevada; podemos evoluir para uma escala maior, uma escala internacional», seu semblante profundo complementado com uma voz grave tornaria o ambiente opressivo para quem não o conhecia, eu fui capaz de notar a sua empolgação. «Eu te quero na equipe, Andrew. Vamos abrir um laboratório em Genebra», ele interrompe seu discurso para me encarar, esperando minha resposta.
Deixei um silêncio pairar por um momento, não sabia como responder. É difícil recusar algo a ser oferecido tão genuinamente, contudo eu não me comprometo com a simpatia. «Eu não preciso disto, estou bem aqui. Tem outros aqui que não são apenas mais competentes e experientes como também mais interessados.»
«Certamente sabia que reagiria assim, vou te dar um tempo para pensar sobre isto. Peço que o faça cuidadosamente, Andrew, tenho grandes expectativas em ti, não me decepciones», confirmei e saí do gabinete o mais rapidamente possível. Sinceramente, este é um caso em que as expectativas são direcionadas para as coisas ao nosso redor em vez de nós mesmos, com o tempo a ignorância se torna uma qualidade.
Terminado o expediente, decido visitar o parque que havia perto de casa depois de estacionar o carro. Em uma caminhada lenta, me aproximo do pequeno estrado de madeira que se estendia até o meio do lago artificial do parque, a ponte que levava até ele estava repleta de flores resultantes de uma primavera profícua. Observava as luzes da cidade refletidas nas águas do lago, por vezes surgia uma tremulação causada por algum peixe insone. Era perfeito, este cenário pacífico era perfeito; foi aqui que nasci, cresci, e aqui morrerei. Não preciso de mais nada, pensei enquanto inspirava profundamente o ar fresco de fim de primavera.
No caminho de volta para o condomínio, me deparo com o gato esperando na porta do apartamento, «Estás com fome, amigo? Infelizmente ainda não fui ao mercado esta semana», disse enquanto adentrava.
«Não estou faminto, tenho assuntos a tratar contigo.»
Congelo na porta, e observo o espaço em minha volta negando a mínima possibilidade de o gato saber falar, sacudo a cabeça e dou mais um passo para dentro do apartamento.
«É assim? Vais me ignorar?»
«Ga-gato?»
«Sim, sim, sou eu, o gato», disse enquanto esfregava os olhos com as patas. «Podes me ajudar a tirar estas lentes de contacto? Já não preciso mais delas. Esqueça, já consegui! Então, me diga, Andrew, qual a dimensão do teu desejo?»
«Desejo?» indaguei ainda paralisado.
«Interessante, estás bem calmo apesar da situação, parece que nada mais te surpreende, certo? Eu sou algo que chamam de oportunidade, uma que aparece apenas uma vez na vida. Andrew Ludwig, apenas me responda qual a dimensão do teu desejo?»
Fecho os olhos à procura de respostas e encontro um vazio ebúrneo, este era o espaço das respostas e das leis. Ouço uma voz grave sussurrar em meus ouvidos: «Tu es in patris locus».
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Nuances da Vida de um Diarista
Gizem / GerilimTempo...Espaço...Memórias...Identidade. Já perdera a noção de tudo isto, afinal já não importa mais. Em sua própria perspectiva, nada mais irá mudar. Só resta esperar. Esta é a história do encontro de um homem fora de seu Tempo, seguindo seu fluxo i...