Raios solares refulgentes proclamaram o início do verão e o fim do meu sono, ambos eram boas notícias, pois estava posicionado desconfortavelmente no meu sofá. Precisei de alguns minutos para receber a dose de consciência que vem ao acordar – não me declaro uma pessoa matutina – e então relembrar, atônito, da conversa com o gato.
Ligo para a clínica e informo Karl sobre minha ausência, dado o início do verão, a carga de trabalho não era tão extenuante. Karl apenas solicita a minha atenção para a possível ocorrência de algum caso de urgência, exceto por isso, hoje teria o dia livre.
Após encerrar a chamada, vasculho meu quarto à procura da caixa que armazenava os pertences de Aldane, tal como Anna havia informado, continha apenas livros, fotos e um diário. Folheei um dos livros que se realçava entre os outros por estar mais danificado, descobrindo ser a Vulgata com alguns versículos sublinhados. As fotos eram todas de plantas e paisagens. Por fim, peguei o diário. Me abstive de fortalecer a esperança de encontrar aqui as respostas que almejava, desta forma, a desilusão não seria tão penosa.
E assim foi, a primeira data foi marcada em 03 de março de 2010, exatamente seis anos depois da instalação de Aldane na residência psicoterapêutica, descrevia apenas sua rotina diária iterativa: o convívio com outros residentes, interações com os funcionários, em que marco uma certa afinidade de Aldane com o cozinheiro local, e as visitas de Anna e Johann. As memórias de Aldane pareciam se dispersar cada vez mais ao longo dos anos, em algum ponto a banca de jornais em frente à residência se tornou um idoso bem trajado, um arranjo de flores se tornou uma viúva e Anna se tornou filha de Johann. A mente de Aldane estava algures entre ilusão e esquecimento, e em meio deste caos, surgiu novamente o maldito gato. Então as datas também ficaram babélicas, cada vez mais antigas e descontínuas.
Apesar de tão desconexo, sentia que havia algo que deixara passar. Guardei o diário e a Vulgata comigo e me aprontei em direção ao local onde um homem, outrora abastado e feliz, perdeu lentamente sua identidade até desaparecer de suas próprias memórias. Ao chegar, sou bem recebido pelos funcionários e alguns dos residentes já conhecidos.
«Este era o quarto dele. Está exatamente como ele deixou», dizia um rapaz robusto enquanto me guiava pelos corredores.
«Obrigado», respondi logo adentrando o quarto. Observei a parede branca desadornada paralela à cama onde me assentei, pousei a Vulgata que trouxera sobre o criado que se situava ao lado e sussurrei "Patris". Fecho os olhos a fim de me misturar com a atmosfera. O que Aldane fazia? O que faria agora?
«O senhor deseja mais alguma coisa?»
Em um sobressalto, percebo que o meu guia permaneceu estático na porta, se esforçando para disfarçar a estranheza da situação. Articulei com um sorriso fraco que podia se retirar, e assim que o fez, peguei o diário de Aldane e percorri as páginas até chegar nas últimas palavras escritas: "In universo stricto, infinitus est Patris locus". Em seguida, caminhei pelo corredor e encontrei o arranjo de flores que foi nomeado Cordelia Laverne, ironicamente, eram Snowdrops, que florescem no inverno como símbolo de esperança ou de desgraça.
Meus sentidos me indicaram as respostas que procurava, Aldane não perdeu apenas as memórias, perdeu também sua identidade, afunilou lentamente sua realidade até esta se extinguir completamente. Como assumir a existência de algo que não possui registro algum? Durantes os cinco anos em que Aldane esteve desaparecido, sua existência foi comprometida, ao menos neste plano do universo, ele não existe mais. Qual foi a dimensão de seu desejo para lhe custar este tanto, Aldane?
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Nuances da Vida de um Diarista
Mystery / ThrillerTempo...Espaço...Memórias...Identidade. Já perdera a noção de tudo isto, afinal já não importa mais. Em sua própria perspectiva, nada mais irá mudar. Só resta esperar. Esta é a história do encontro de um homem fora de seu Tempo, seguindo seu fluxo i...