CAPÍTULO 3 - ANDANÇAS

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A menina acordou com o barulho dos entregadores em casa, finalmente os móveis tinham chegado. De pijama, foi para a cozinha, onde sua mãe servia uma xícara de café para a Amália. O pão que a inspetora trouxe para o café com as novas vizinhas do prédio estava quentinho. Scarlet comeu em meio às caixas e móveis empilhados ao redor da cozinha, ouvindo as duas mulheres conversarem sobre a rotina da próxima semana. Na segunda-feira os alunos do curso superior chegariam para realizarem as matrículas nas disciplinas.

– Eles disseram que teve um problema no motor do caminhão, por isso tiveram que parar a viagem. – suspirava a mãe após tomar um gole de seu café sem açúcar. – A sorte foi que eu trouxe algumas coisas pra dormir, agora tem essa bagunça toda pra arrumar!

– Vou chamar o Rogério para te ajudar, – a inspetora comia um pedaço do pão – ele é nosso faz-tudo.

Quando dormiu na noite anterior, Scarlet estava animada para andar pelo Instituto e conhecer mais sobre sua faculdade. Contudo, sua animação deu lugar a um leve desespero, visto que grande parte do trabalho seria feito por ela e sua mãe, não dava para contar com Helena e Dorothy para arrumar qualquer coisa que não fosse seus respectivos guarda roupas.

A faxina foi grande, depois que Amalia saiu levando de volta sua vasilha de plástico, mas deixando a cafeteira com café fresco que emprestou para Carmen, começaram a arrumação. Varreram, tiraram a poeira, passaram pano, esfregaram o chão e cada canto. Desfizeram correndo as malas e as caixas enquanto os homens, junto do tal Rogério, um senhor bigodudo, baixinho mas muito forte, colocavam os armários no lugar.

Quando terminaram, a hora do café da tarde se aproximava, mas ela não tinha fome. Se direcionou ao quarto, saltando as infinitas caixas vazias no corredor, o frio era mais suave do que pela manhã, graças ao sol fraco que entrava pela sacada. Vestiu o mesmo jeans do dia anterior, não tinham visitado a lavanderia no terraço do prédio ainda, e duvidou que naquele clima qualquer roupa fosse secar. Seu suéter marrom estava sujo de sangue, então teve de continuar com o moletom cinza, o mesmo que usava quando conheceu Estevam.

Estevam, havia algo nele que nunca havia visto em homem algum, se bem que poderia pensar isso pois só conversou com os trogloditas do colégio. Talvez Ramon... aquele garoto da oitava série com quem deu seu primeiro beijo na festa junina, o garoto era bonito e legal, então era uma exceção. Mais uma vez o homem surgiu em seus pensamentos, "É um professor, ô tarada!", se censurou. Decidiu focar em outras coisas, sentou-se na sacada, e tomou o sol da tarde durante quase 1 hora enquanto lia e relia a mesma página do livro, pois sempre se perdia em devaneios sobre como sua vida seria. Se viu na sala de aula, debatendo com seus colegas sobre guerras e sobre paz, sobre a vida da humanidade, sobre a ação do homem no tempo. Se enxergou lendo grandes livros empoeirados na biblioteca, escreveria teses na máquina de escrever que um dia virariam livros famosos "Scarlet C. Montagori", veria seu nome nas convenções junto dos outros historiadores, agora não havia censores que a proibissem de fazer e dizer o que quiser na faculdade. A jovem sacudia seus pés no ar, sentia o sol no rosto, os pássaros cantavam nas araucárias, seu pai chegaria do trabalho com sonhos quentinhos dentro da sacola de papel. Não. Ele não chegaria.

Largou "Dom Casmurro" em cima da cadeira. Achou dentro do guarda roupa aquele batom da embalagem azul que sua tia lhe deu de aniversário, um que mudava de cor quando passava nos lábios. O vermelho do batom e o preto do rímel realçou seus olhos verdes.

– Aonde vai? – falou a mãe ao vê-la calçar os sapatos, ela supervisionava Rogério enquanto instalava a parabólica na televisão da sala.

– Andar até o campus, ver aonde vou estudar.

– Certo, mas cuidado. - ponderou a mulher. – E devolve a garrafa da dona Amália que está em cima da pia. Ela mora no 101, e agradece o café de novo.

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