Aquele fim de semana que se seguiu foram os mais ansiosos e ao mesmo tempo entediantes dias que já presenciou. Decidiu que antes da segunda-feira daria um retoque geral: hidratou os cabelos, fez as unhas dos pés, lixou bem os calcanhares, esfoliou o corpo inteiro e depois se cobriu com pomada de bumbum de neném misturada a algumas gotas de óleo de rosa mosqueta puro, receita da vovó. No domingo à tarde, tediosamente chuvoso, pegou a maleta de manicure da mãe e sentou-se no chão do quarto, de frente para a sacada aberta. Apreciando o som da chuva nas folhas, abriu a grande maleta e contemplou o conteúdo, analisando cada vidro de esmalte, chegou a alguns finalistas, entre perolados, rendas e tons de vermelho, Scarlet escolheu o clássico Rebu. Uma mão aguardava pacientemente no pote de margarina Doriana, agora cheio de água morna e condicionador de cabelo para amolecer as cutículas, enquanto a outra separava instrumento por instrumento para dar início à tortura.
– Espátula, lixa, alicate... Droga, esse tá amassado. – Vasculhava com a mão esquerda, fazendo os metais e vidros cantarem uma melodia irritante. – Aqui, falta só o palito.
Escolhia entre os diversos palitos de madeira o que tinha a ponta mais fina, preparou seu arsenal na pequena toalhinha, coberta de pintinhas coloridas de esmaltações anteriores. Aquela pequena tarefa a fazia se sentir especial, como se pertencesse a uma comunidade secreta pois sabia que, em todos os lugares do mundo, alguma mulher estaria fazendo a mesmíssima coisa que ela num domingo chato
–A Sociedade Secreta das Mulheres Entediadas, "SSME"... Não, isso não é uma sigla de força. – disse remexendo os dedos enrugados no pote. Secou a mão e começou a empurrar as cutículas com a espátula, arrependendo-se de não ter feito isso na semana passada.
–"Sociedade das Mulheres Entediadas no Domingo à Tarde." – devaneou pegando o alicate e ajustando-o na mão. Começou a cortar o excesso de pele delicadamente do polegar, evitando pegar os cantinhos.
– M.E.D.A. – repetiu para si mesmo, agora com a lixa na mão, rindo de suas próprias bobeiras. – Até parece nome de ONG. – afinou os cantos, deixando as unhas pontudas como garras de gato, do jeito que viu na revista da AVON.
Retirou as cutículas e lixou unha por unha, repetindo o ritual na outra mão. A chuva caía pacientemente, não estava forte, feito água saindo de um borrifador de plantas, fazendo as gotas cantarolar em contato com as folhas do jardim de hortênsias azuis. Na estrada ao longe, um carro azul escuro cortava a estrada, lutando contra a lama que se formava, aparecendo e desaparecendo pelos espaços entre as árvores.
A paz que sentia era avassaladora, eliminava sua ansiedade de outrora, feliz de estar ali, no seu quarto, naquele simples devaneio feminino. Imaginou Júlia e Teresa, sentadas ao seu lado, fazendo florzinhas nas unhas usando a ponta dos palitos de dente, falando do material escolar novo e da roupa que escolheram especialmente para o primeiro dia de aula. Guardou o alicate, a espátula e a lixa e levantou-se, indo em direção ao banheiro para jogar a água fria fora.
– Será que ainda tem bolo? – pensou que era melhor comer logo agora, antes que passasse o esmalte.
Com um prato de louça fina e branca, do tamanho perfeito para uma fatia de bolo de laranja coberto por uma calda adocicada e cítrica, sua especialidade, sentou-se na varanda junto da xícara de café. Queria que o dia passasse devagar, por isso comeu o bolo lentamente, bebendo pequenos goles do café quente. Também queria que a chuva não terminasse, por isso pintou as unhas com toda a paciência do mundo, aplicando com atenção as três camadas de esmalte vermelho, e em seguida aplicou a base para o brilho. Esperou secar com calma, vendo a noite cair, a casa estava silenciosa, dias de chuva trazem aquele sono que atrai até o mais enérgico dos homens a se acomodar na cama quente.
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Castiglia
VampireO Instituto Castiglia respirava a história colonial brasileira, um colégio e faculdade de tradição católica, rígido em suas normas, onde só quem pudesse pagar, e muito bem, conseguiria entrar. É lá que o professor do curso de História, Estevam C, pa...