A garota saltitava pela estreita rua, sacudindo de um lado para o outro sorridente, seus lábios se moviam soltando frases em inglês fora de ritmo. A música ele conhecia, não era bem do seu gosto, mas costumava ficar antenado nas coisas do presente, ficar sabendo do que estava na moda e do que os jovens gostavam, era parte do seu trabalho.
Ela não o via, estava de pé entre as árvores do caminho, meio escondido na noite que havia caído feito um manto de neblina, observava cada movimento dela, como se cada sorriso fosse um convite a um mundo que ele ainda pouco conhecia. Uma brisa gélida varria a rua, mas Scarlet parecia não se importar, e muito menos ele. As mãos do homem variavam entre o bolso e o cigarro já na metade, a fumaça branca subia junto do aroma.
Aquela noite era uma péssima noite, fazia alguns dias que não ia até a cidade, ficou trancado naquela cabana, trabalhando em peças de arte com as cinzas de sua última queima e, claro, finalizando a porcaria do plano de curso. Era uma péssima noite para ele, os desejos estavam voltando, suas necessidades básicas precisavam ser saciadas mas, por que escutou a respiração dela? Por que sentiu aquele cheiro de novo? Por que seus olhos procuravam pela figura dela em todos os lugares naquela merda de lugar e, pior, se alegraram em vê-la?
Era tão estúpida, tão distraída, sempre distraída, alheia das coisas ruins que a cercavam. Se ela soubesse minimamente onde estava pisando, com certeza não sairia por aí, como se Castiglia fosse a Terra de Oz em que seus sonhos iriam ser realizados, se ela soubesse... Mas não, lá estava a menina, dançando radiante sobre um banco, fazendo da praça mal iluminada seu palco, fazendo dele seu fã lunático que a perseguia pela rua. Por um momento ele foi, um mísero segundo de fraqueza e ele assistia o show da garota com brilho nos olhos, "O que foi Estevam? Esqueceu quem você é?", escutou as vozes de sua cabeça, e o sorriso que cortava seus lábios se fechou. O olhar encantado deu lugar ao nojo, ao desprezo.
Ele viu as próprias mãos enormes, um marfim regado por veias de um azul quase negro, viu o sangue seco embaixo das unhas, viu os pulsos marcados por arranhões, sinais de luta de sua última aventura, sentiu a boca seca como se as brazas do forno subissem pela garganta, e lembrou de quem era. Alguém solitário, que não podia ficar por aí assistindo garotas burras dançando, alguém que não podia ficar por aí desejando tomar a felicidade delas como se tomava uma taça de vinho, uma monstruosidade que no fundo adorava ser o que é mas... Era isso mesmo que ele desejava agora? Queria mesmo sentir o pescoço fino e macio dela, quente, vivo, ser esmagado por suas mãos gélidas? Realmente beberia aquela alma até o último suspiro de vida desaparecer em frente aos seus olhos? Aqueles olhos verdes. Ele conseguiria fazer isso? Nunca conversou por tanto tempo com alguém que fosse saciar seus desejos, ele nunca...
De repente, ela parou seu pequeno sonho dançante, desceu do palco, ou melhor, do banco improvisado. Girou a cabeça, observando o lugar com seus olhos desconfiados, quem sabe se dando conta de que estava num lugar público. Tirou os fones e os enrolou ao redor do aparelho amarelo cheio de adesivos coloridos, por fim colocou na bolsa e a fechou. E, como se fosse uma pessoa normal, andou de volta pela estrada com as mãos pressionando a barriga, olhando para baixo, em direção ao refeitório cujas luzes conseguia ver, de certo estava faminta. Estevam conteve seus pés, fincando os sapatos lustrados no chão com força para não deixá-los ir além, atrás da garota a impedindo de chegar ao jantar.
– Quer saber? – andou para fora de seu esconderijo, e jogou a bituca que voou pelo ar até cair no latão de lixo ao lado do banco onde anteriormente ela estava.
Seguiu seu caminho pelas árvores sem que fosse percebido, tomando o destino de Scarlet como se fosse o seu próprio destino. Assistiu ela entrar no refeitório, cheio de lugares desocupados e olhares vazios de algumas pessoas que digeriam a feijoada, agora que os alunos da faculdade já foram embora. Apesar que não fosse muito de seu gosto, o cheiro era bom e podia ser sentido desde o parque, quem sabe por isso ela andou tão rápido. Entre as fatias de laranja e a couve refogada estava ela, o objeto de seus desejos mais obscuros, decidindo se pegava ou não outro pedaço da fruta.
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Castiglia
VampireO Instituto Castiglia respirava a história colonial brasileira, um colégio e faculdade de tradição católica, rígido em suas normas, onde só quem pudesse pagar, e muito bem, conseguiria entrar. É lá que o professor do curso de História, Estevam C, pa...