A semana se arrastou, Dom Casmurro chegou ao fim e Scarlet começou e terminou "O Queijo e os Vermes" por indicação da mãe, e chorou terrivelmente nas últimas páginas ao descobrir que o pobre Menocchio tinha morrido nas mãos da inquisição italiana, a História dos homens é mesmo mais triste do que feliz no fim das contas. Ela também fazia suas caminhadas à tarde pelo instituto até os limites da floresta, sempre retornando quando o sol começava a desaparecer. À noite, depois da janta e da novela das nove, se sentava na sacada com sua xícara azul e o cobertor, ouvia suas músicas, prestava atenção no livro, e na varanda do apartamento vizinho. Mas ele não apareceu mais. Com os dias, concluiu que provavelmente deveria estar ocupado com a volta às aulas, assim como sua mãe, e apenas aceitou que não o veria tão cedo.
– Não é como se eu sentisse falta dele. – ponderou para si mesma conforme caminhava até o prédio do IESC.
Naquela segunda-feira, acordou cedo, arrumou-se com afinco, colocou a jaqueta preta, seu lenço de seda vermelho ao redor do pescoço e saiu com a lista de disciplinas na mão, era dia de matrícula. Pela primeira vez viu o lugar em pleno funcionamento, vários carros parados no estacionamento, homens e mulheres circulando pelo prédio, conversando alto e se abraçando, procurando suas respectivas coordenações o mais rápido que pudesse antes que as vagas nas turmas acabassem. Ela deveria ter andado mais rápido, ou saído mais cedo de casa, ou ter ficado menos tempo deslumbrada com tudo, pois a fila estava quilométrica. Adentrou a secretaria da universidade e furou seu caminho até a escada, subindo para a sala da coordenação do curso de História. Depois de cansar as pernas na fila, finalmente chegou sua vez de entrar no cubículo que era a sala, a garota se sentou abrindo a bolsa e retirando uma pasta cheia de documentos. O coordenador era um homem grisalho e branco de rosto largo e vermelho, barba feita, camisa social azul desabotoada apenas na gola que por sua vez exibia um escapulário. Sebastião Passos, professor de História Moderna I e II, conforme anunciava a placa em cima da mesa.
– Bom dia, matrícula?
– Bom dia Professor, Sim, vim me matricular e...
– Nome completo e número de matrícula, trouxe o código das disciplinas? – falou de supetão, correndo os olhos azuis sobre uma lista com dezenas de nomes impressos.
– Certo, eu sou Scarlet, Scarlet Montagori, é...– ela não sabia o número de matrícula.-- eu, eu ainda não sei a matrícula. – admitiu tímida.
–Caloura é? –suspirou, seu tom de voz se tornou bondoso frente à ignorância, já devia ter lidado com aquilo mil vezes. – Vou procurar sua ficha no registro do primeiro período. -- finalmente, um pouco de empatia e paciência com quem estava começando.
O homem se virou em sua grande cadeira de couro, alcançou o arquivo, o grande móvel de metal que comportava mais de 20 gavetas de pastas e fichas.
– Deixe-me ver... M...N...O...S, Sara, Sabrina, Samanta, Samuel, Sávio..., é, a única Scarlet da turma. – ajeitou o pequeno óculos no nariz pontudo e curvo, afastando-o dos olhos para ver melhor, e puxou o papel de súbito. – eu acho... que do curso! Te falar que talvez até da universidade viu. –o homem sorriu, elevando suas bochechas gordas e vermelhas.
– É um nome bem diferente. – Scarlet justificou. – Acho que minha mãe leu em algum livro.
– Bom Scarlet, esse aqui é seu número de matrícula. – sublinhou com uma caneta vermelha o número na ficha– 1989666H. Quer dizer que você é a aluna 666, no ano de 1989 e do curso de História, sugiro que anote.
Ela repetiu o número 666 várias vezes mentalmente, enquanto o colocava no canto da folha que trouxe.
– Bom, vamos às disciplinas. – disse largando a caneta na mesa e pegando uma grande régua de madeira. O homem apontou para um quadro de cortiça muito grande à esquerda de Scarlet cheio de tabelas com nomes das matérias e seus horários. – Você sabe quais são as que você vai fazer?
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Castiglia
VampireO Instituto Castiglia respirava a história colonial brasileira, um colégio e faculdade de tradição católica, rígido em suas normas, onde só quem pudesse pagar, e muito bem, conseguiria entrar. É lá que o professor do curso de História, Estevam C, pa...