SOMBRIO

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Lucas está sem palavras. Não consegue entender, mas sente que não importa, quer levar seu irmão de volta.

– Vem, vamos sair daqui. – Ele diz.

– Eu não posso. Preciso de você.

– Precisa... Luiz, nossos pais tão lá na casa, eles vão amar te ver. A mãe, o pai.

– Eu não posso. Ele me disse que você pode ajudar, aí vo pode ir.

– Ele? Quem é ele?

– Espera, já volto! – Diz o garotinho, empolgado, tão rápido, corre de volta pra escuridão.

– Luiz? – Lucas tenta o segurar, mas não consegue o tocar, nem o seguir, o perde de vista. O silêncio volta a imperar. O desespero começa a espreitar. Escuridão por toda volta.

– Não assusta, tá bom? – Diz a voz do seu irmão, na escuridão. – Ele é como eu.

Do escuro, sai Luiz, brilhando púrpura novamente, de mãos dadas com uma mão muito fina e pálida. Lucas segue o olhar para ver aquele ser saindo do escuro, é o Ser sombrio, todo coberto em um manto preto, com a pele tão pálida e fina que parece apenas ossos. Olhos e nariz tão fundos e escuros que parece nem ter. Como o rosto de uma caveira. Ele é mais alto do que Lucas.

– Luiz, vem pra cá! – Sente tanto medo do que o Ser sombrio pode fazer com seu irmão.

– Tudo bem Lucas, ele é como eu, tá morto também. – Diz o garotinho, tão ingênuo abrindo um sorrisinho.

– Vem pra cá! – Com medo, Lucas não se aproxima muito, mas estica seu braço.

Luiz olha para o Ser, que faz um aceno com a cabeça, permitindo que Luiz vá até seu irmão.

– Tudo bem, eu também assustei, mas ele é bonzinho. Não é mal, ele me mostrou. Ele pode te mostrar também. Não pode? – Se vira para o Ser. – Pode? Mostra pra ele também?

– O rapazinho tem razão. – Diz o Ser, em uma voz menos sombria do que a que Lucas havia escutado antes. Tentando ser simpático, ele tenta dar um sorriso, mas quase sem expressão, por falta de músculos faciais. – Não tem o que temer. Eu posso mostrar a você.

– Quem, quem é você?

– Eu? Bom, eu tenho muitos nomes, alguns me chamam de caveira, outros de assombração, pode me chamar de Corpo Seco, a sua disposição. – Diz, fazendo uma reverência, gesticulando com as mãos, falando como se fosse uma canção, o que diverte Luiz. – Mas a verdade, é que eu sou família.

– Família?

– Sim, isso! De geração em geração, de mim até você. Você veio de mim, como o seu pai e o pai dele, e assim continuando, é claro.

– Eu não to entendendo.

– Me deixe te mostrar, não vá me odiar. – Diz o Ser se aproximando.

Lucas tenta colocar Luiz para trás de si, tentando o proteger, mas sua mão atravessa o corpo do menino, como se ele não estivesse ali. Lucas pensa "Eu enlouqueci".

O Ser sombrio, com seu braço esticado, leva seus dedos finos, tão finos como ossos, até a testa de Lucas, que sente tanto medo, mas não consegue se mover, porque não quer deixar seu irmão. Quando os dedos do Corpo Seco tocam sua testa, tudo em volta some, sua visão escurece, brilha, tão rápido, não consegue explicar, e logo surgem visões.

Nas visões, vê a si mesmo, em momentos da sua vida, vê sua mãe, vê o pai dela, o pai dele e assim sucessivamente. O pai do pai, do pai, do pai, voltando no tempo, homens incríveis, homens terríveis. Mulheres incríveis, mulheres terríveis, geração após geração, até voltar tanto, não sabe quanto, em uma enorme casa de madeira, séculos atrás, parece a mesma casa que vive hoje, porém maior, mais imponente, com uma plantação na frente. Homens andando a cavalo, mulheres usando vestidos, estradas não pavimentadas, a cidade quase não existe. Visões de um casal feliz, aos beijos, se casando, celebrando. A esposa grávida. Dentro da casa, vê o mesmo homem, sozinho, infeliz, bêbado, triste. Havia enterrado sua esposa a poucos dias. Seu filho chora no berço, mas ele está tão bêbado. Uma arma sendo disparada. Um outro homem cai em um beco. Pessoas gritam. Pessoas o chutam, cospem nele. Uma senhora pega o bebê. Visões do homem fugindo pra floresta com a criança no colo, chorando. O homem tão atormentado. Preso. Sendo odiado. A senhora, sua mãe, o expulsando. Sujo, nas ruas perambulando. Dormindo na lama, dando sustos em crianças. Importunando senhoras, até que chega sua hora. Ele morre e não fazem enterro, enrolam em um pano e jogam em qualquer cova. Chove, seu corpo morto é expulso da terra, desliza em um lago, ele é levado. Encontrado. Usado. Jogado. Enterrado. Desenterrado. Seu corpo, com o tempo, desintegrado, parte da floresta que hoje habita. A visão termina.

Lucas volta a si. Tão espantado, tão comovido, uma experiência única e transcendental, seu olho se enche de lágrimas, olha fixo para o Ser sombrio.

– Meu nome um dia foi José, João José, como você é João. – Diz o Ser. – Não se preocupe, ele viu apenas as partes boas. – Diz José, falando apenas para Lucas, se referindo a Luiz.

– É verdade? Eu não entendo. Porque? O que é você?

– Eu sou um ser que não desceu e nem subiu. Expulso da terra e banido no céu, injustamente devo admitir. Sou só um corpo seco, essa carcaça, que não me deixa viver em paz. Eu só quero poder viver em paz de novo, tão bem. Sentir a luz do sol na minha pele, o vento no meu rosto, com meus cabelos a voar. Poder dormir, comer, sorrir, chorar. Eu não sou nada além de um corpo seco, sem nada dentro, preso em um único momento, que não vai e nem volta, trancado na mesma roda. Você pode me ajudar?

– Como? Porque agora?

– Ora, por muito tempo não conseguia me levantar, via a hora passar, a chuva cair, a terra mudar, mas eu consegui. Estou aqui, preso entre essas árvores, e só um dos meus pode me mudar. Você, você pode.

– Preciso de você, Lucas! – Diz seu irmão, pulando empolgado.

– O que eu posso fazer?

– Veja, você não é apenas você, você carrega em si uma parte de mim, uma parte dele. – Aponta para Luiz. – Há outro mundo, um lugar do qual me aprisionei. É quase dentro de mim. Tem uma energia, que eu não consigo alcançar. Mas você pode despertar.

– Porque eu?

– Bom, além de você estar vivo, fundamental devo dizer, no seu peito há sentimentos mais complexos do qual nenhum pode conceber. Você viu a morte, você viu a vida. Você andou na beira desse precipício tempo demais, meu filho. Só você pode entender.

– Eu preciso... – Lucas respira fundo tentando processar tudo que viu e ouviu. – É muita coisa. Era você lá em casa, não era?

– Eu tentei me comunicar, mas fico fraco longe dessas árvores. Sinto muito se te assustei.

Lucas o vê realmente sendo sincero. Não havia notado, mas agora percebe que a chuva havia parado. Acima dos galhos e plantas, o céu já começa a ficar em um tom azulado, o vento que chega até a floresta já é mais gelado.

– Irmão, se você me ajudar, eu posso voltar pra casa. Quero ver a mamãe, o papai! – Vendo o rosto de Luiz, tão claro na sua frente. Lembra do acidente. Essa é sua chance de reparar a culpa que sente.

– É verdade?

– Sim, eu acredito que sim. Essa energia. – Põe a mão no peito. – pode ser o bastante para refazer o seu irmão, seu corpo, e me acordar, me fazer viver de novo.

– Como eu faço?

– O mundo que eu falei. Eu posso abrir uma fresta para lá. É lá que a energia está, e você precisa pegar.

– Então vamos. Eu vou. – Olha para Luiz, se ajoelha para falar cara a cara com ele. – Você é a única coisa que importa. – Tenta o tocar.

– Eu quero abraçar meu irmão. Como a gente faz isso?

– Vou providenciar.

O Ser sombrio se vira, dá alguns passos. Na floresta, já não está mais tão escuro como anteriormente. O Ser junta seus dedos, com suas mãos no seu peito, aponta para frente. O vento fica forte. Ergue os braços. Um ponto de luz avermelhada surge na frente do Ser sombrio. A ventania se intensifica, levantando plantas e terra do chão. O Ser abaixa seus dedos rapidamente e o ponto de luz segue o movimento e de repente há uma fresta, uma fenda com bordas cintilantes, um portal que flutua no ar, e dentro, do outro lado há uma terra morta, seca, galhos quebrados, um céu cinza, nuvens ainda mais cinzas.

– É pra lá que vamos. – Diz o Ser, apontando o caminho.

Lucas sente medo, mas não desiste, tenta novamente tocar seu irmão.

– Então vamos lá.

Os três caminham e atravessam o feixe de luz. Desaparecem. O portal se fecha.

A Natureza do MalOnde histórias criam vida. Descubra agora