A música ao longe era alegre e suave, perfeitamente harmonizada às cores, movimentos e sensações que Cybelle usava como despertador em sua página inicial do Masterverso.
A possibilidade de acordar já conectado à realidade virtual tinha sido um dos últimos avanços na tecnologia dos chips cerebrais, mais de duzentos anos antes, mas Cybelle ainda se espantava com essa habilidade da máquina de distinguir entre um comando do cérebro desperto e um do cérebro adormecido.
E ali estava ela, como de costume, abrindo os olhos do seu avatar no Master muito antes de abrir os olhos reais. Aliás, já havia passado semanas inteiras sem se desconectar, e às vezes até questionava a própria decisão de praticar atividades físicas de vez em quando, ou de se alimentar com bolos alimentares em vez de simplesmente injetar na veia os nutrientes de que precisava. Afinal, era assim que muitos faziam, e, com exceção apenas do cérebro, o corpo humano havia se tornado um hardware desnecessário para a vida em Um Mundo.
Levantou-se animada, dançando entre os lençóis de ar coloridos que flutuavam à sua volta, enquanto ordenava que os robôs domésticos fossem cuidar da higiene matinal do seu corpo na realidade exterior. Abrindo telas instantâneas com pinturas automáticas, foi ilustrando ao longo do caminho os versos que cantou junto com a música:
Um beijo à luz de Órion
Em nosso barco de cristal
Meu mundo são seus olhos
E o paraíso é digitalDirigia-se, como sempre, à Sala de Casal que instalou com Zenão para oficializar seu relacionamento, alguns meses antes. Inclusive, aquela era sua única razão para acordar tão cedo: passarem um tempinho juntos antes de ele ir trabalhar. Como não era sempre, porém, que estava tão animada e apaixonada como naquele dia, deixou a música continuar tocando mesmo depois de entrar na sala.
Zenão esperava no grande sofá branco em forma de nuvem que era um dos móveis preferidos dos dois para decoração do ambiente — especialmente quando queriam fazer amor.
— Alguém acordou animada — comentou Zenão, enquanto Cybelle começava a deletar suas roupas. — Espere, querida, espere! — ele pediu depressa, levantando-se para detê-la. Ela pausou a música e olhou para ele com uma expressão surpresa. Ele, por sua vez, explicou com ar de contrariedade: — Tenho que ir imediatamente ao trabalho. Vamos fazer uma limpeza geral nos sistemas, e as coisas vão virar um caos por lá muito em breve. Se você tivesse demorado mais meio minuto, teria encontrado só um bilhete de despedida.
— Um bilhete de adeus? — ela provocou.
— Um bilhete com uma boa e uma má notícia. A má é que não posso ficar para o nosso chamego. Mas a boa é que posso voltar mais cedo.
— Mais cedo quanto? — ela perguntou, desconfiada.
— Cedo — ele falou, apenas. — Acha que poderia me esperar aqui na nossa nuvem?
— Vou ver o que posso fazer — disse ela, fingindo desinteresse, mas sem esconder um traço de diversão.
Ele a beijou com ardor como uma forma de compensar a desfeita. Mas, talvez por isso mesmo, ela achou o beijo um pouco artificial, demais até para os padrões da realidade virtual. E não que alguma vez tivesse beijado fora da realidade virtual.
— Volto assim que puder — falou Zenão, desaparecendo logo em seguida.
Cybelle olhou em volta um pouco decepcionada, depois voltou à sua própria página inicial. Apagou os lençóis de ar que ainda flutuavam por ali e, suspirando, convocou alguns terminais que usava para organizar o trabalho. Tinha perdido bastante interesse, mas, se conseguisse adiantar as próprias tarefas, quem sabe ainda conseguisse ter um tempo bom com o marido até o final do dia.
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Cybelle e a Incerteza Cibernética
Ficção CientíficaCybelle quase nunca sai da realidade virtual. Ela se casou há pouco tempo e vem se destacando em seu trabalho, um dos poucos em Um Mundo em que os humanos ainda competem com IAs. Mas nem tudo é o que parece em seu casamento, e algumas revelações per...