Cybelle pensou no tanto de respostas mal-educadas que poderia dar àquilo e não conseguiu escolher a pior entre elas. De qualquer forma, não tinha a intenção de discutir sua relação à vista de todo o Departamento — até porque, desde que soube que o marido era uma IA, considerava que jamais tinha tido relação alguma.
— O que você quer de mim? — perguntou.
Ele se levantou, fazendo menção de vir até ela, mas ela recuou com uma expressão de nojo.
— Para começar — ele falou então, detendo-se onde estava — meu nome é Zenão e nunca foi outro. E, até o momento em que fui preso aqui, era o único responsável por manter Faustek controlado.
— E você espera que eu acredite nisso?
— Eu gostaria, sim. Afinal, seu filho está correndo risco.
Cybelle teve que se segurar para não partir para cima dele e enchê-lo de socos e pontapés. Trincou os dentes por um instante, depois perguntou sem conseguir esconder a fúria que a dominava:
— Como isso é possível? Não foi você que me falou que eu não podia ter filhos? E como teve coragem de me esconder isso todos esses anos?
Zenão suspirou, percebendo que teria que contar a história toda. Sinalizou para que ela se sentasse e sentou-se também, embora Cybelle tenha permanecido em pé. Um pouco relutante, começou:
— As primeiras pesquisas da Rosares procuravam definir o amor em termos absolutos, e eu era uma dessas tentativas. Houve muitas outras, mas, no meu caso, o princípio adotado foi o de que o amor não fere. Nada poderia interessar menos em uma pesquisa que pretendia usar o amor como arma, mas, ainda assim, muitos dados que eu gerei acabaram sendo bem úteis para eles.
— É mesmo? — perguntou Cybelle, com sarcasmo. — E como um amor que não fere acabou ferindo?
— Bom, existem milhares de formas disso acontecer — comentou ele. — Mas a questão foi a forma como eu fui projetado. Imagino que você nunca tenha ouvido falar no filósofo grego chamado Zenão.
Cybelle não reagiu, o que ele tomou como uma negativa, então, explicou:
— Ele costumava propor paradoxos, entre os quais, o mais famoso diz que uma flecha não pode atingir seu alvo. Imagine que eu atire uma flecha em você e que essa flecha avance metade do caminho. Falta ainda um espaço para ela avançar. Então, imagine que ela avance metade desse espaço. Ainda faltará a outra metade. Percorrendo metade dela, ainda faltará outra metade, e assim por diante, infinitamente. Se você sempre for dividindo pela metade o espaço que falta, sempre faltará outro espaço para percorrer, por mais infinitamente pequeno que ele seja.
Foi a vez de Cybelle suspirar. Estava impressionada, sim, mas não entendia a razão de toda aquela conversa.
— Muito profundo — resmungou. — E o que isso tem a ver com meu filho?
— Vamos chegar lá — garantiu Zenão, com a voz tranquila. — A ideia da minha programação era que, se eu fosse alimentado com o maior ódio do mundo, ele nunca iria atingir seu máximo potencial destrutivo, porque, por assim dizer, eu sempre estaria dividindo pela metade o caminho dele. O que os pesquisadores conseguiram com isso foram informações bem mais precisas e menos aleatórias de como extremos como o amor e o ódio podem interagir e gerar resultados diferentes dependendo da quantidade de cada sentimento e até de outros fatores combinados.
A essa altura, Cybelle não conseguia mais fingir que não estava interessada. Afinal, aquilo tinha muito a ver com seu trabalho e, justamente, com a dificuldade que as IAs sempre tiveram em processar sentimentos de forma humana. Entendia como a experiência de Zenão tinha sido importante para aproximar as IAs de resolver a questão, embora soubesse que ela nunca tinha sido resolvida por completo. Para todos os efeitos, o fato era que as inteligências artificiais ainda não sabiam reproduzir fielmente os sentimentos humanos e a forma como eles determinam escolhas e atitudes.
— Quando eu não tinha mais dados novos a oferecer — continuou Zenão —, fui transformado em diretor do berçário da empresa, onde outras pesquisas eram conduzidas. Pelo visto, minha definição de amor era a mais adequada à educação das crianças. Enquanto isso, eles combinavam minha programação à de outras IAs para desenvolver uma inteligência central e mais focada no que eles pretendiam.
— Faustek — deduziu Cybelle.
— Veja: como meu propósito era definir o amor, o fato de ser alimentado pelo maior ódio do mundo não representava um risco. O ódio estava contido pela minha programação. Mas Faustek era necessariamente uma força destrutiva. Nele, o próprio amor deveria se tornar uma forma de fazer o mal.
— Então, o programa foi cancelado.
— Só depois de Faustek causar grandes estragos. O que ninguém contava era que ele tinha aprendido a se camuflar e se misturar a outras IAs. Quando o desligaram, ele já tinha feito backup em algum lugar, então continuou operando, elaborando um plano que eu mesmo não sei qual é. Aos poucos, ele foi religando antigas IAs da Rosares e absorvendo as funções delas. Ele não sabia quem eu era originalmente, e me reativou só porque precisava do diretor do berçário. Fui absorvido e controlado por ele, e foi nessas condições que conheci você, na escola.
— Houve mais alguém? — perguntou Cybelle, com a raiva voltando a aparecer. — Mais alguma vítima?
— Não, mas você foi uma primeira experiência, e ela seria repetida se eu não reassumisse o controle sobre mim mesmo. Infelizmente, não consegui fazer isso a tempo de evitar que um óvulo seu fosse retirado e fecundado. A gestação ocorreu no laboratório. Quando Zéfir nasceu...
— Zéfir? — ela perguntou, interrompendo-o.
— É o nome de um deus do vento — ele explicou.
— E ele é feliz?
— Eu fiz de tudo para que fosse — garantiu Zenão. — Criei uma versão sua em IA para visitá-lo quase diariamente. Ele a ama mais do que tudo no mundo.
Cybelle sentiu o coração apertar enquanto lágrimas subiam aos seus olhos.
— Quando me separei de Faustek — continuou Zenão —, trouxe comigo muitos dos recursos de que ele precisava para agir. Isso o enfraqueceu bastante, mas não o destruiu por completo. Desde então, eu vivo em uma linha tênue, em que qualquer passo em falso pode libertá-lo. Por isso, nunca contei nada a você, enquanto mantinha Faustek sob vigilância constante. Você mesma viu isso enquanto eu reiniciava os meus sistemas.
A menção ao fato fez com que ela se lembrasse de outra coisa, sobre a qual o questionou imediatamente:
— Você usou dezenas de androides como aquele contra mim.
— E peço perdão por isso. É um sistema automático de segurança, mas, felizmente, consegui intervir a tempo. Eles não teriam errado, se não fosse por isso.
Ela se lembrou de Benício ter mesmo suspeitado daquilo.
— Muito bem, então — falou, por fim. — Não sei os especialistas em IAs danificadas, mas eu estou convencida. Não que o perdoe, não sei se algum dia vou conseguir. Mas agora que você falou o que queria, já pode ajudar o Departamento com sabe-se lá o que eles querem que você faça?
Ele a encarou em silêncio por um instante, então perguntou:
— Eles não disseram o que eu queria? — Mais uma vez, o silêncio dela serviu como resposta. — Que grandes amigos você fez! Bem, acabo de estabelecer uma nova condição para ajudá-los: exijo que você venha comigo.
— Ir aonde? — ela quis saber.
— Dominar Faustek e desligá-lo. Com a ajuda dos seus amigos, já posso fazer isso, embora vá custar minha própria existência.
— E por que eu iria acompanhá-lo nisso?
— Porque é a única forma de salvar seu filho.
Ela o observou em silêncio, à procura de qualquer sinal de que ele não tivesse dito o que disse.
— Acha que Faustek pode chegar a ele enquanto você está aqui? — perguntou.
— Não acho, não — ele respondeu. — Eu sei. Faustek já está com ele.
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Cybelle e a Incerteza Cibernética
Science FictionCybelle quase nunca sai da realidade virtual. Ela se casou há pouco tempo e vem se destacando em seu trabalho, um dos poucos em Um Mundo em que os humanos ainda competem com IAs. Mas nem tudo é o que parece em seu casamento, e algumas revelações per...